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«Lucrécia acorreu ao terceiro grito de Marfisa. A verdade era que não
tinha gritado tanto como noutras manhãs, em que a ouvia a vizinhança. -
Lucrécia, Lucrécia do demónio, onde te meteste? Lucrécia entrou compungida. -
Estava e preparar o banho da senhora. - Ah, isso parece-me bem. Realmente o que
me pede o corpo é um banho, mas não muito quente. Como está o dia? -
Escaldante, senhora. Pode-se estar no pátio graças à sombra da parra. Parece
que o Verão se prolonga. Marfisa estava nua e esparramada em cima da cama, com
as roupas aos pés, feitas numa rodilha, como se as tivesse espezinhado. - E
aqueles dois? - Partiram de manhãzinha, senhora. - Iam satisfeitos? - E, antes
que Lucrécia lhe respondesse, acrescentou: - Pagaram-te?
- Em cima da mesa está uma bolsa
com dez ducados de ouro e a mim o Rei deu-me meio ducado. Creio que não tinha
mais. Deu o dinheiro a Marfisa, que o fez tilintar. - Pelo menos é ouro. Dez
ducados, dizes tu? Sai a dois e meio por cada ofensa a Nosso Senhor, e a bolsa
pela nega. É de bom veludo. - Uma nega, disse a senhora? - Sim, filha, a quinta
já não pôde ser. Empenhou-se em mirar-me e remirar-me, e, quando se cansou,
disse que tinha sono e deixou-me com a água na boca. Precisamente quando me
começava a apetecer. E tu? - Eu passei a noite, senhora, num puro gozo, com o conde
sempre em cima de mim, e aqueles olhos de gato que não deixavam de me fitar.
Mais que de gato, de tigre. Os olhos dos tigres devem ser assim. Iluminavam o
quarto todo.
- Exageras. - Juro-lhe pela
memória de minha mãe, que também foi p…, mas que se arrependeu a tempo. E o
belo enterro que teve, graças a Deus e às almas cristãs! - Deixa em paz a
memória da tua mãe, e alcança-me uma toalha, para me embrulhar. Enquanto tomo
banho, prepara-me de almoçar. Estou morta de fome. Saltou da cama e
embrulhou-se no toalhão que Lucrécia tinha tirado de um arcaz. Deixava-lhe a
descoberto as coxas morenas e justas, as pernas esguias. Lucrécia contemplava-a.
- Por isso é que as coisas são como são e não como deviam ser. Esse corpo
merecia outra sorte. - Queres dizer um marido? - Deus me livre de tal coisa!
Quero dizer melhores amantes. - Parece-te
pouco o Rei, ainda que seja só por uma noite? - O Rei não a deixou satisfeita,
pelo que acabo de ouvir. Em compensação, eu… Enquanto saía do quarto, Marfisa
respondeu-lhe: - O Rei é um catraio. Não sabe da missa a metade, nem nunca
tinha visto uma mulher nua. O que aprenderia na minha cama, em sete noites! -
Então, para que é que é Rei?
O Rei deixou de contemplar o horizonte, onde a última mulher nua se
tinha desvanecido, e ficou alguns instantes cabisbaixo, embora com cara de
aluado. Depois levantou-se e disse a Cosme, que esperava ao pé da porta: -
Traz-me as chaves da sala proibida. Cosme tremeu visivelmente. - Isso mesmo,
ouviste bem. -- E se mas recusarem, que faço? - Dizes que é ordem real. O moço
de câmara inclinou-se profundamente e saiu. O Rei hesitou por instantes.
Aproximou-se da janela aberta, que dava para a praça de armas. Um pelotão de soldados
exercitava-se ao longe. Mais perto, conversavam alguns cavalheiros, e um
cavaleiro muito emplumado caracoleava com o seu cavalo perante um grupo de
espectadores estupefactos: tudo sob um sol que começava a ser tórrido. Alguém
enxergou o Rei, e fez uma saudação com o chapéu. Os outros saudaram também, e
os soldados do pelotão apresentaram armas, mas o Rei não os via: via apenas
um imenso vazio: impreciso nos seus contornos, como se fosse feito de
nuvens. Mas o céu estava limpo. O Rei fechou os olhos e continuou a vê-lo,
e só então se convenceu de que o tinha dentro de si, de que não podia ver outra
coisa. Ficou a contemplá-lo com o rosto imóvel e o olhar fixo, até que chegou o
pajem e fez soar as chaves. O Rei voltou-se e estendeu a mão; o pajem, ao entregar-lhas
de joelhos, advertiu: - Tive que as roubar, senhor. - Fizeste bem». In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado
(Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992,
ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da E. Caminho/JDACT