A Quinta da Regaleira e o Portugal Imaginal. Entrevista com José Manuel
Anes 2ª Parte. Da evidência da Identidade Imaginal Portuguesa à necessária
Re-criação da tradição
(…)
Paulo: António Cândido Franco disse que era a Renascença, o tronco central da
cultura portuguesa...
José: É isso que nos falta,
esse caminho mediador que faça as mediações, as hermenêuticas, as interpretações:
a terceira via, o terceiro incluído. Ora bem, esse é que é o problema. Nós
passámos quase todos estes últimos séculos, de uma maneira mais dramática do
que noutros sítios da Europa, entre um positivismo estreito e uma mística
beata, de um certo dogmatismo, e, portanto, esse caminho está aí para
reinventar, para refazer, está aí todo à nossa frente, à nossa espera.
Paulo: Não acha fabuloso que, apesar dos anátemas constantes lançados pela Igreja,
por exemplo, Gilbert Durand menciona terem existido 15 ou 17 interdições referentes
ao Culto do Espírito Santo, ao longo dos séculos, e do racionalismo
dessacralizador o povo tivesse preservado, nesses últimos séculos, tantas
tradições?
José: Não quero mistificar o
povo, mas a verdade é que o povo tem sabedoria.
Paulo: A festa do Espírito Santo que ainda existe nos Açores é disso um
exemplo paradigmático...
José: Também ainda existe
aqui na Peneda, na Serra de Sintra, e está retratada aqui na Regaleira.
Desde há dez anos, nos meus trabalhos publicados, identifiquei várias
componentes simbólicas existentes na Regaleira, mas só se lembram da
vertente maçónica quando falam deles. As componentes do imaginário nacional,
aqui estão elas, pu-las todas em evidência. Identifiquei também componentes
rosa-crucianas, alquímicas, templárias e estão aqui pelo menos duas indicações
maçónicas. Bom, a verdade é que a própria biblioteca do Carvalho Monteiro
revelava um interesse pelo Quinto Império, pelo Culto do Espírito Santo, pelo
sebastianismo, etc.,etc. Ora bem, o Culto do Espírito Santo é um património
mítico nacional de um humanismo profundíssimo. Nós, que às vezes ficamos muito
assustados com os mitos nórdicos e outros, podemos estar tranquilos e
orgulhosos desta tradição. É mais outro motivo para termos orgulho nacional.
Esta mitologia do Espírito Santo é de uma fraternidade espantosa. É a coroação
do menino, como símbolo da coroação da inocência e da simplicidade de espírito.
Depois o gozo colectivo, esse símbolo da fraternidade entre os homens. Por último
a libertação dos presos, que simboliza a libertação da humanidade e da alma
prisioneira. Tudo isso é de uma sabedoria profunda. E lá está, quem é que o guardou? Não foram
os intelectuais. Foi o povo que guardou, apesar das perseguições, assinale-se.
Paulo: E, pelo que tenho testemunhado no resto do país, existem muitas outras
tradições com uma riqueza simbólica impressionante...
José: Claramente. Outra
grande iniciação que encontramos no povo são as festas cíclicas, em datas fixas
ou móveis. Há um ritmo cósmico na natureza. Se nós nos colocarmos em sintonia
com esse ritmo natural, efectuamos uma iniciação ao longo do ano. A
cristianização das festas não perdeu esse ciclo, essa dimensão, porque, inteligentemente,
o cristianismo utilizou o mesmo ciclo anual através da vida de Cristo, que se
identifica com o Sol em certos aspectos. Desta forma, essas festas cristãs
realizadas ao longo do ciclo anual baseiam-se no pressuposto de que Cristo é o
Sol. No Natal é o Sol que está quase a morrer, mas que vai renascer. É o Sol
Invictus que chega ao ponto mais baixo da sua queda no solstício de
Inverno mas vai recomeçar. Vai ressurgir. Há uma sintonia perfeita com este
ciclo natural. E tudo indica, dizemos exegetas bíblicos, que Cristo, ou Jesus, terá
nascido por volta da Primavera. Pela descrição evangélica parece que, na realidade,
terá sido nessa altura. Santo Agostinho disse que a religião cristã não vinha
abolir as antigas, mas sim que lhes veio dar cumprimento. E quando o
cristianismo fez isso foi fabuloso, porque integrou toda uma sabedoria milenar,
integrou-se nos ritmos cósmicos e deu uma expressão a todo esse património
arcaico que nós temos.
Paulo: Na época, os cultos de Mithra
tinham uma grande força e há notícia de que os sacerdotes dessa divindade
tenham chegado a perguntar aos cristãos: Mas o vosso Deus não é o mesmo que
o nosso?
José: Exactamente. O Natal
cristão foi colocado a 25 de Dezembro porque era exactamente esse o dia dos
festejos do nascimento de Mithra,
que constituía uma religião concorrente do cristianismo. Mithra, na altura, era o deus exportado para todo o Império
Romano. Mas, de facto, o mais importante é o 25 de Dezembro simbolizar o
solstício de Inverno, arcaico.
Agora, em rigor, situa-se entre 21 e 22 de Dezembro.
Paulo: Temos aqui a Gruta de Leda. A sua arquitectura interior recorda-me
os cairns pré-micénicos da Grécia
arcaica. Nesta estátua central temos Zeus em forma de cisne a picar Leda, a
matéria imaculada da qual desta vez não vão nascer Castor e Pólux, mas
sim uma pomba do Espírito Santo. Isto é altamente imaginativo...»
In Paulo Loução, A Alma Secreta de Portugal, Ésquilo Edições &
Multimédia, 2004, ISBN 972-8605-15-3.
Cortesia de Ésquilo/JDACT