Pérsia.
Março. 1901
«Tapo o nariz com os dedos e engulo
dois testículos de galo crus. Trate de não fazer essa cara, khanom Simone, ordenou a parteira. Faça o
que eu digo, caso contrário o seu útero vai continuar a cuspir sangue todos os meses.
A mulher está a bater uma mistela castanha num almofariz de ferro fundido, e fá-lo
com uma expressão tão séria, que por certo se imagina a criar vida. Anda de um lado
para o outro enquanto mistura a polpa de um peixe raro que só se encontra no
mar Cáspio, cinco pérolas pulverizadas provenientes de ostras férteis, dois gramas
de ouro, e um outro elixir secreto. Enfio as mãos nos bolsos das minhas calças de
montar no preciso instante em que a bruxa me dá a cheirar um dedal contendo água
de rosas, e esforço-me para conter o vómito. Porque haveria eu, filha de Françoise
e neta de madame Gabrielle, ídolos da sedução, de me esconder numa casa de pedra
no cimo das montanhas persas? Porque haveria eu de engolir testículos? E porque
haveria eu de seguir os conselhos de uma parteira louca? A resposta residia em Yaghout,
a minha sogra.
Uma vez chegados ao porto de Anzali,
no mar Cáspio, e cansados depois de meses a viajar desde a França à Pérsia, eu e
Cyrus juntámo-nos a uma caravana que seguiu por entre desfiladeiros pedregosos,
a caminho de Teerão. Os telhados vermelhos de uma pequena cidade constituem a minha
primeira visão da Pérsia quando cheguei a Anzali, vinda de Baku. E, à distância,
uma crista de montanhas oculta entre as nuvens. A seguir, atravessámos um enorme
deserto dentro de uma série de kajavehs,
uns veículos destinados a dois passageiros que lembravam poleiros de galinha
equilibrados em burros. Foi com os rostos marcados pela fadiga e cobertos de poeira
que chegámos ao Mahaleh, o Bairro Judeu. As velas do Sabat
tremeluziam nos parapeitos das janelas. Abrimos caminho até ao Sar-e-chal, a margem
do poço, avançando por entre um emaranhado de ruelas estreitas e muros em ruínas.
Um cheiro nauseabundo invadiu-me as narinas.
Bem no meio do bairro abria-se um
poço, e neste erguia-se uma montanha enorme de lixo em decomposição.
Mercadores, lojistas, residentes, toda uma gente envolta numa capa de tristeza atirava
para esta vala o seu lixo diário. Os homens usavam estranhos chapéus, cónicos ou
de pelica caso pertencessem às classes médias e altas, ou então, os barretes lãzudos
e as copas de feltro dos cossacos e dos trabalhadores. Quanto ao turbante do religioso,
lembrou-me a fofa almofada de penas da minha mãe. Estranhas lojas, pequenas e viradas
para a rua, perfilam-se ao longo do bazar. Os lojistas sentam-se de forma a poderem
chegar a tudo sem que seja necessário levantarem-se. Cozinheiros públicos assam
espetadas de carneiro em leitos de carvão em brasa. Um aguadeiro, o jarro de pele
de ovelha empoleirado aos ombros, estende-me uma caneca de folha. Cyrus
enxota-o com a mão, ao mesmo tempo que me tapa os caracóis ruivos com o lenço. Diz
que não devo beber outra coisa para além de chá quente até que me acostume aos germes
persas. Ocultas por debaixo de chadors,
os olhos cansados a espreitar por entre persianas feitas de crina de cavalo, as
mulheres movem-se de cá para lá como se fossem tendas negras. Até mesmo os fantasmas
de madame Gabrielle teriam rejeitado este lugar sombrio, onde as mulheres judias
são obrigadas a usar chador. Lembro-me
que foi por isto que troquei o Château Gabrielle. Era difícil para o camelo que
transportava as nossas coisas continuar a andar por aquele estreito cul-de-sac. Recorremos aos serviços de uma
mula para finalizar a tarefa de carregar a nossa bagagem». In Dora Levy Mossanen, A Cortesã,
2005, tradução de Lucília Rodrigues, Difel, 2006/2007, ISBN 978-972-290-860-3.
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