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Primeiro foram as injecções. Os comprimidos. Atara o cabelo no cimo da cabeça,
com as farripas húmidas de suor coladas ao pescoço. Era mais prático. E não lho
cortavam. Talvez. Organizava as coisas. Sempre. Com o destino. Entendia do
desuno. Sabia. Puxara a saia até à cintura quando não ouvia passos no corredor
de pedra e mexia os dedos para cima e para baixo entre as pernas. Era bom. Um
dia apanharam-na e ataram-lhe as mãos atrás das costas. Não, isso foi no colégio
de freiras ainda era muito pequena, lembrava-se. Começava a misturar tudo?
Subitamente pensa: isto é um
pesadelo. Como se me morresse por dentro de mim; os passos feitos, elaborados
em câmara lenta, as pernas pesadas, que tento, que vou arrastando. Entende,
finalmente, que parte dela se expõe e se torna exterior, mas que outra parte se
mantém oculta, aparentemente adormecida e inerte, embora pulsante. Numa espécie
de hibernação, à espera. Como vai ela aguentar os desequilíbrios, os ventos
raivosos, as chamas ateadas da paixão? Tudo dentro dela está a ficar remexido:
o que há séculos dormia, enterrado, está a vir ao de cima. Em carne viva.
O que esquecera ficará provavelmente
lembrado, o que escondera, irá encontrar-se brevemente à mostra na sua
enormidade. E naquele momento, só com tudo isso (esse vulcão em erupção) desguarnecido,
sente-se vulnerável, aterrada com a violência do que se apercebe sentir e
pergunta a si mesma: como?
Como irá poder aguentar sozinha a resposta dos outros a tanta violência? E o
medo suspenso ganha terreno no seu peito. No berço, Constança limitava-se a olhar
e a temer o escuro da ausência da mãe. Mas o perigo, sabe agora, encontra-se na
claridade: a claridade desvenda, acende, incendeia, queima. Vê ainda o tom de
sol que um dia, bruscamente furou a bruma da ilha e foi poisar directo no cimo
da ilha em frente, um vulto esguio e azulado, cortado a meio por nuvens tão
brancas que faziam doer os olhos. Constança sentiu que o sol exorcizava as
feiticeiras, as bruxas, que sempre pensara estarem ali acatadas. Os anjos. Voando
de noite.
E as asas luziam tanto que e1a
começou a chorar baixinho de as ver queimadas. Ninguém deu por isso, só ela
que, apoiada na amurada do jardim espraiado sobre o mar ouvia as ondas lá em
baixo, a bater nas rochas cinzentas e frias. A avó, que a viu a chorar, fez-lhe
uma festa demorada na cabeça, sem lhe perguntar nada. Era assim que ambas
gostavam, demoradas naquele silêncio conivente entre elas. Ou será que inventa?
Isto é um pesadelo, pensa. Um pesadelo. E adormece de bruços na cama, a
meio da tarde, exausta das noites passadas em claro, com aquela dor a revolver-se
dentro do coração. Aquela perda.
E voltava a ouvir Henrique a
contar-lhe da aventura com a outra, palavra por palavra, como se ele estivesse
ali a repetir, repetir tudo, enquanto ela se movia sobressaltada dentro desse pesadelo,
dessa queda, desse medo. Gritou, antes de acordar, os cabelos pegados ao pescoço
pelo suor que a inundava toda. Encostou a testa aos joelhos mudos e soerguidos,
trémulos, e deixou-se ficar a tentar controlar a respiração ofegante. A rememorar
o que Henrique lhe dissera depois, a voz mansa, os olhos fugindo à tentativa de
ela os encontrar para tentar ver mais fundo. Mais dentro: eu amo-te, sabes, eu amo-te.
Não posso viver sem ti, bem sabes. Nada disto tem importância, nada disto tem
importância para mim. E soluçara baixinho, os dedos compridos a procurarem os
dela que fugiam». In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand
Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.
Cortesia
de BertrandE/JDACT