«Ocupo com estas palavras um espaço que
não é meu: Maria Teresa Horta honrou-me com o pedido de algumas linhas de
introdução ao seu romance, inspirado na 4.ª Marquesa de Alorna, dona Leonor
Almeida Portugal. O convite é o resultado do interesse que ambas partilhamos
por esta mulher extraordinária do século das Luzes, inteligente, culta,
espirituosa, bonita, sensível, voluntariosa, sofredora. Ao contrário do que
acontece com a maioria das mulheres portuguesas que viveram no passado, conhecem-se
milhares de testemunhos acerca da vida e da actuação desta mulher: há cartas,
depoimentos, opiniões de contemporâneos, certidões e documentos notariais, para
além de uma vasta obra poética, filosófica e erudita que legou à posteridade. Para
quem se interessa pela história das mulheres em Portugal, para alguém que, como
Maria Teresa Horta, está interessado em interrogar o lugar social,
político, intelectual e (porque não dizê-lo) sexualmente marcado do feminino na
cultura portuguesa, a escolha de dona Leonor Almeida como personagem central de
um romance é iluminadora. Mas é também um desafio. A decisão de escrever sobre
alguém que viveu no século XVIII obriga à pesquisa histórica, trabalho que
Maria Teresa iniciou muito antes de nos termos conhecido, com uma persistência
e uma minúcia que raramente se encontram em alguém que, de facto, não foi
treinado para as agruras da investigação de arquivo.
Obriga, sobretudo, a constranger a
elaboração poética, a limitar as possibilidades de criação ficcional, a
restringir o que se inventa ao temporalmente verosímil. Assim, é num lugar
condicionado por factos, por datas, por documentos, que a escrita das Luzes de Leonor acontece, nesse
território estranhamente mágico em que a ficção e a história mutuamente se
seduzem sem nunca se renderem uma à outra. É nessa zona fluida, de tensão
permanente entre o factual e o imaginado, que a narrativa de Maria Teresa Horta
vai abrindo lugares de passagem entre o presente e o passado, e entre vários
momentos do passado que a dinâmica do devir histórico associou.
Sublinhe-se, no entanto, que tem nas mãos
um romance, não um livro de História. Os dados históricos surgem trabalhados
pela escrita e são-nos contados por um narrador que
não só tudo sabe, como pode permitir-se projectar os seus afectos no que conta
e, até, entrelaçar vários planos temporais, como acontece com a narrativa dos
meses da vida da avó de dona Leonor, desenrolados em paralelo com o relato da
vida da neta, ou com as reflexões sobre ambas, feitas a partir do momento
presente, que também se cruzam nesse enlace. A plasticidade do romance permite
isso, como permite que o relato se distribua por várias vozes, ou que ao lado
de personagens reais apareçam personagens imaginárias, ou mesmo que se
infiltrem na trama romanesca personagens importadas de outras narrativas, à
laia de homenagem aos seus criadores, como acontece com Lilias Fraser.
Se quiséssemos traduzir em palavras
simples o modo como a escrita de Maria Teresa Horta trabalha os dados da
História, poderíamos dizer que os revisita para lhes acrescentar aquilo que o
olhar do historiador geralmente deixa de fora: a dimensão emocional, a interioridade,
uma profusão de pequenos pormenores significativos que permitem revelar o mais
íntimo de uma personalidade dada, de uma atmosfera particular, de todos os
cambiantes dos afectos. Muitas vezes, de modo inesperado. Porque se procura
traduzir um olhar feminino sobre as coisas que não é nem passivo nem
assexuado.
Diga-se claramente que a escrita de Maria
Teresa Horta adiciona uma dimensão sensual (no sentido mais abrangente do
termo) a tudo o que representa e empresta às vozes dos seus narradores um tom
de intimidade e de introspecção que acentua a sensação de proximidade com o
narrado. Muito contribui para esse efeito de proximidade a evocação de
pormenores de época que apelam aos sentidos e o transportam para ambientes
povoados por uma infinidade de texturas, cheiros, cores e sabores evocados por
meio da descrição pormenorizada de peças de vestuário, de roupas de cama, de
tecidos de decoração, de comidas, de doces, de perfumes inebriantes e de
cheiros desagradáveis, de interiores recheados de móveis, objectos de
decoração, louças e vidros, bem como de cenas ao ar livre povoadas de
vegetação, de árvores e de flores. Gostaria de insistir nesta atenção ao
detalhe que enforma a prosa de Maria Teresa Horta, no cuidado com a escolha das
palavras, na atenção às suas sonoridades, no jogo com os seus possíveis
sentidos. Entre História e ficção, prosa e poesia, racionalidade e exploração
dos afectos, romance de aventuras e viagem sentimental, o romance é uma
experiência de leitura única que não deixará indiferente nenhum
leitor». In Vanda Anastácio
In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom
Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
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