Uma carta escrita pela minha mão
«(…) Os palácios régios
lisboetas também não se livrariam deste flagelo de todas as cortes que eram os rumores,
com a diferença de que os que circulavam na margem do Tejo, no início de 1448, continuavam a ter como alvo o Regente.
Tratava-se de envenenar as suas relações com o rei adolescente para provocar a
ruptura definitiva entre ambos. Os mesmos nobres que um dia tinham estado a favor
da rainha dona Leonor, acabando depois por aceitar o poder do infante Pedro,
conspiravam agora para que o rei se desentendesse com o seu tio. Assim, quatro meses
depois de ter feito nove anos, a infanta dona Joana testemunhou o seu primeiro golpe palaciano em terras lusas. Segundo
as crónicas, em meados de Julho de 1448,
em Santarém, Afonso V tomou sua casa e
sua mulher (...) com as habituais bênçaos, cerimónias e festejos, ainda que não
tan grandiosos quanto o gostaria o infante Pedro. Houve apenas alguma mostrança de festas. Depois de
escrever ao seu sobrinho uma carta na qual lhe entregava formalmente o poder, o
cada vez mais preocupado pai da nova rainha de Portugal mudou-se para as suas
terras de Coimbra. E assim pareceu acabar tudo. No entanto, pouco depois,
começaram a ocorrer alvoroços em algumas cidades do reino. Ao mesmo tempo, o
rei não deixava de manifestar publicamente a sua preocupação com as injustiças
sofridas por aqueles que tinham apoiado a sua mãe, e que, por causa do tio, se tinham
visto forçados ao exílio e à perda dos seus bens.
É possível que o
interesse prestado pela infanta dona Joana a essas intrigas palacianas, que
terão sem dúvida contado com a participação de servidores muito próximos dela,
pelo menos durante o seu exílio castelhano, fosse muito menor que o dedicado a
um acontecimento que certamente atrairia, pouco tempo depois, a sua atenção,
assim como a da sua irmã, a infanta dona Leonor. E tudo isso devido à chegada à
corte de Lisboa de uma carta dirigida aos
reis de Portugal, da parte da rainha dona María de Aragão, antiga protectora
de dona Joana, enviada em meados de Outubro de 1448. Uma missiva na qual a rainha aragonesa recomendava ao casal
real português as pessoas do barão Jorge von Volrestorff e Ulderico Riedrer, embaixadores do ilustríssimo príncipe Federico,
rei de romanos. Tratava-se de distintos diplomatas alemães que tinham
estado antes em Nápoles, com Alfonso V de Aragão, com o fim conseguir a
apresentação de o Magnânimo perante o nosso muito caro e amado sobrinho, para
ver as ilustres infantas, suas irmãs, com uma das quais tem grande desejo de
tratar matrimónio. É possível que esta ideia tivesse surgido entre os que
rodeavam o papa Nicolau V, apesar de tanto os portugueses como os aragoneses terem
logo atribuído a si próprios a iniciativa. Na realidade, o pontífice assinara
pouco antes uma concordata com o Império e desejava assegurar também a lealdade
do reino de Nápoles, em teoria vassalo da Santa Sé. Pelo que oferecera a
Alfonso V de Aragão a possibilidade de casar uma das suas sobrinhas portuguesas
com o jovem imperador da casa de Habsburgo.
No fim de contas, esta
antiga linhagem, originária das montanhas da actual Suíça, dera um verdadeiro
salto qualitativo no século XIII, quando a outro pontífice ocorrera favorecer a
escolha de um dos membros da dita família como imperador de Alemanha.
Supostamente, aquela família seria mais fácil de controlar, e o membro
escolhido poderia ser usado contra a muito mais prestigiosa e poderosa casa imperial
de Hohenstaufen. Na sua carta, a rainha de Aragão explicava ao sobrinho Afonso
V que, com o séquito dos embaixadores alemães viajavam também três senhoras nobres austríacas, cuja
tarefa consistia provavelmente em realizar determinadas pesquisas discretas
sobre aspectos relacionados com a virtude,
das três infantas candidatas.
Naquela época o êxito de
um matrimónio dinástico baseava-se quase exclusivamente em duas tradicionais
premissas femininas: a fertilidade e a
castidade da futura rainha consorte. Nas monarquias hereditárias do
antigo regime, à rainha é exigido um respeito rigoroso das normas morais,
especialmente no que se refere à fidelidade matrimonial, e não só pela sua
posição social, mas também porque a legitimidade da dinastia descansava na sua
própria honestidade (...), a feminilidade e a exaltação moral da soberana, até
ao ponto de se converter na figura paradigmática da qual dependia a ordem moral
e social.
Segundo a historiografia portuguesa, a primeira tentativa de chegar a
um acordo sobre o matrimónio de uma das infantas portuguesas com o imperador
alemão não resultou, devido ao boicote do seu parente próximo, o duque de
Borgonha. Este fracasso voltou a concentrar a atenção da corte sobre o duque de
Coimbra, que nessa altura chegou a indicar numa carta que entre os que
procuravam acabar com ele não se encontrava o rei que contra mim nom tem culpa algua, mas sim os partidários ainda ressentidos
com a antiga rainha. Muito hábeis, segundo o tio de dona Joana, a utilizar suas falsas palavras». In A
Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de
uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-626-405-5.
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