«(…) Dalila Pereira aponta para a
necessidade de superação da actual confrontação entre Ocidente e Oriente,
situação que seria marcada pela oposição e incompreensão mútuas. A saudade,
seria assim, no Extremo-Ocidente, uma forma de conhecimento, como
conhecimento-vivência, que fará parte daqueles a que, como o Taoísmo, Budismo
zen, vedanta, ou yoga, se podem chamar propriamente meios de libertação.
Dalila reitera o que já antes afirmara: que o complexo cultural da saudade se
aparenta mais às formas cognitivas orientais do que às ocidentais. Na
cultura ocidental moderna surgiria assim um conhecimento, porventura único, que
é simultaneamente uma vivência, diverso pois do pensamento ocidental,
habitualmente distanciado e desinteressado. Esse conhecimento, da saudade,
constituiria uma proposta mais que uma imposição, de um meio de libertação.
A saudade e o espinosismo (apresentado como importação ocidental de uma forma
de conhecimento salvífico, próprio da cultura oriental) inscreveriam
assim, no Ocidente moderno, sem nenhum ponto comum com o contexto cultural
donde brotaram, sabedorias salvíficas.
A aproximação ao Oriente pode
então ser vista como um modo de regresso, recuperação e renovação de fontes
aqui esquecidas ou refutadas: subjacente à saudade, como ao Taoísmo, zen,
yoga, tantrismo, como meios de libertação, residiria uma força de vida,
que poderia ser contactada, possuída directamente, e que rebentará os
limites e capacidade do puro intelecto, como única e parcial forma cognitiva
usada pelo homem ocidental. A saudade, tal como essas tradições orientais,
situa o centro do conhecimento não no pensamento consciente mas no coração. O
Budismo corresponderia, contudo, a uma desvalorização da vida. A isto no Oriente
se consideraria como uma forma de libertação. Ao longo do continente eurásico, contudo,
dar-se-ia um aceitar e assumir progressivo do corpo e vida terrestre, de Leste
a Oeste, pelo amor. Camões, assim, teria pela saudade transmitido um
ensinamento contrapolar ao do Buda, mas nascendo todavia da mesma experiência,
como choque dramático do ser e estar no mundo. A experiência da saudade
propiciaria, por um mesmo Despertar, um outro atingir da libertação em face
do sofrimento, do devir, do ciclo morte-vida-morte, e uma outra apreensão do eu
absoluto. A inapreensibilidade do eu individual será vencida pela memória, a
que conserva indelével através do devir, o traço da sua realidade, transitando
incólume, entre vida e morte, Sião e Babilónia.
Este passo surge-nos como dos mais
importantes de toda a reflexão teórica de Dalila acerca do Budismo. Parecendo aceitar
uma teorização da metempsicose de tipo pitagórico, Dalila, em sua teoria da saudade
não só mantem o eu, como ainda mais, opera a revelação de um eu absoluto,
perfeitamente experienciável, afirmado em toda a sua positividade, como
entidade permanente e substracto de nossas experiências sucessivas. A proposta
budista de libertação seria, assim, ultrapassada pela experiência saudosa. Em
contexto budista, a proposta de Dalila Pereira Costa configura aquilo que se
designa como uma visão extrema, o substancialismo ou eternalismo,
posição que afirma uma entidade permanente e substancial que fundaria os
fenómenos ou o eu.
Esta atitude é tradicionalmente
refutada argumentando com o reconhecimento de que tudo o que é composto é
impermanente e de que tudo o que aparece é interdependente, não podendo nada
existir separadamente e nenhuma aparência possuindo existência absoluta, mas
sempre relativa à percepção condicionada que a apreende. Assim, sempre o tempo
e a matéria poderão ser divididos e sempre o eu deverá ser visto como um
conjunto de agregados karmicamente condicionados e marcados por uma experiência
de apego e aversão mais ou menos intensa. O contrário absoluto da posição
eternalista constituirá, na posição sustentada pelas escolas filosóficas
budistas, uma outra visão extrema: a da negação de toda a realidade e
verdade aos fenómenos e ao eu, configurando uma posição niilista, que deve ser
refutada pelos adeptos do Caminho do Meio, lembrando que a lei do karma é real
para quem a experiencia, embora haja um estado, absolutamente real, onde tal
lei deixa de ser actuante. Esta argumentação, conhecida como teoria da
dupla verdade, não constitui um posicionamento dualista na medida em que a
verdade relativa (a verdade da dor que perpassa toda a existência condicionada)
se subsume na verdade absoluta, a verdade última percepcionada pela sabedoria,
desprovida de fabricações mentais e caracterizada por se encontrar para além
da mente, por ser impensável e inexprimível». In Rui Lopo, A leitura do Budismo
na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos, Universidade de Lisboa, Associação
Agostinho da Silva, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.
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