quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Budismo na obra de Dalila Pereira Costa. Rui Lopo. «A saudade e o espinosismo (apresentado como importação ocidental de uma forma de conhecimento salvífico, próprio da cultura oriental) inscreveriam assim, no Ocidente moderno, sem nenhum ponto comum…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Dalila Pereira aponta para a necessidade de superação da actual confrontação entre Ocidente e Oriente, situação que seria marcada pela oposição e incompreensão mútuas. A saudade, seria assim, no Extremo-Ocidente, uma forma de conhecimento, como conhecimento-vivência, que fará parte daqueles a que, como o Taoísmo, Budismo zen, vedanta, ou yoga, se podem chamar propriamente meios de libertação. Dalila reitera o que já antes afirmara: que o complexo cultural da saudade se aparenta mais às formas cognitivas orientais do que às ocidentais. Na cultura ocidental moderna surgiria assim um conhecimento, porventura único, que é simultaneamente uma vivência, diverso pois do pensamento ocidental, habitualmente distanciado e desinteressado. Esse conhecimento, da saudade, constituiria uma proposta mais que uma imposição, de um meio de libertação. A saudade e o espinosismo (apresentado como importação ocidental de uma forma de conhecimento salvífico, próprio da cultura oriental) inscreveriam assim, no Ocidente moderno, sem nenhum ponto comum com o contexto cultural donde brotaram, sabedorias salvíficas.
A aproximação ao Oriente pode então ser vista como um modo de regresso, recuperação e renovação de fontes aqui esquecidas ou refutadas: subjacente à saudade, como ao Taoísmo, zen, yoga, tantrismo, como meios de libertação, residiria uma força de vida, que poderia ser contactada, possuída directamente, e que rebentará os limites e capacidade do puro intelecto, como única e parcial forma cognitiva usada pelo homem ocidental. A saudade, tal como essas tradições orientais, situa o centro do conhecimento não no pensamento consciente mas no coração. O Budismo corresponderia, contudo, a uma desvalorização da vida. A isto no Oriente se consideraria como uma forma de libertação. Ao longo do continente eurásico, contudo, dar-se-ia um aceitar e assumir progressivo do corpo e vida terrestre, de Leste a Oeste, pelo amor. Camões, assim, teria pela saudade transmitido um ensinamento contrapolar ao do Buda, mas nascendo todavia da mesma experiência, como choque dramático do ser e estar no mundo. A experiência da saudade propiciaria, por um mesmo Despertar, um outro atingir da libertação em face do sofrimento, do devir, do ciclo morte-vida-morte, e uma outra apreensão do eu absoluto. A inapreensibilidade do eu individual será vencida pela memória, a que conserva indelével através do devir, o traço da sua realidade, transitando incólume, entre vida e morte, Sião e Babilónia.
Este passo surge-nos como dos mais importantes de toda a reflexão teórica de Dalila acerca do Budismo. Parecendo aceitar uma teorização da metempsicose de tipo pitagórico, Dalila, em sua teoria da saudade não só mantem o eu, como ainda mais, opera a revelação de um eu absoluto, perfeitamente experienciável, afirmado em toda a sua positividade, como entidade permanente e substracto de nossas experiências sucessivas. A proposta budista de libertação seria, assim, ultrapassada pela experiência saudosa. Em contexto budista, a proposta de Dalila Pereira Costa configura aquilo que se designa como uma visão extrema, o substancialismo ou eternalismo, posição que afirma uma entidade permanente e substancial que fundaria os fenómenos ou o eu.
Esta atitude é tradicionalmente refutada argumentando com o reconhecimento de que tudo o que é composto é impermanente e de que tudo o que aparece é interdependente, não podendo nada existir separadamente e nenhuma aparência possuindo existência absoluta, mas sempre relativa à percepção condicionada que a apreende. Assim, sempre o tempo e a matéria poderão ser divididos e sempre o eu deverá ser visto como um conjunto de agregados karmicamente condicionados e marcados por uma experiência de apego e aversão mais ou menos intensa. O contrário absoluto da posição eternalista constituirá, na posição sustentada pelas escolas filosóficas budistas, uma outra visão extrema: a da negação de toda a realidade e verdade aos fenómenos e ao eu, configurando uma posição niilista, que deve ser refutada pelos adeptos do Caminho do Meio, lembrando que a lei do karma é real para quem a experiencia, embora haja um estado, absolutamente real, onde tal lei deixa de ser actuante. Esta argumentação, conhecida como teoria da dupla verdade, não constitui um posicionamento dualista na medida em que a verdade relativa (a verdade da dor que perpassa toda a existência condicionada) se subsume na verdade absoluta, a verdade última percepcionada pela sabedoria, desprovida de fabricações mentais e caracterizada por se encontrar para além da mente, por ser impensável e inexprimível». In Rui Lopo, A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos, Universidade de Lisboa, Associação Agostinho da Silva, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.

Cortesia da ULisboa/JDACT