«(…) O estado a que se chama nirvana,
em vez de ser definido como uma experiência de aniquilação deve ser entendido
como uma visão da vacuidade de todos os fenómenos, o que não equivale à sua
mera inexistência e, assim, à total ausência de sofrimento. Todavia, nas
escolas do chamado Grande Veículo, é ensinado que para além do samsara
e do nirvana é que reside o Despertar último, a Budeidade
perfeita. Só aí se poderá aceder à percepção simultânea da vacuidade e da
experiência relativa dos seres condicionados. A identificação do Budismo com
uma forma de niilismo constitui assim uma construção filosófica ocidental de
oitocentos, ainda mantida por alguns intérpretes que não se deixam persuadir
pela contemporânea literatura budológica, de crescente qualidade e consistência
teórica.
Em outra obra, mais recentemente
publicada, Os Sonhos - Porta de Conhecimento, a mesma questão
volta a surgir. Colocando-se a necessidade de reconhecimento ou identificação
do eu, Dalila Pereira interroga onde iremos colher o elo que une o eu diurno
e o eu nocturno, o ser vígil e o ser onírico. A sua postura metafísica leva-a a
experimentar a necessidade de remontar a um substrato sobrenatural que denomina
como surexistência. As perdas, as mudanças, deverão ser vistas como
aparentes, exteriores e provisórias. A evidência da transformação, e do
sofrimento que lhe é inerente, não deverá contudo conduzir a nenhuma espécie de
Nada: a certeza da descontinuidade não deverá implicar um caminho de
aniquilação mas, pelo contrário, a segura apreensão e possessão da sua
continuidade, da sua imortalidade; o conhecimento do Sol transcendente. A
autora explicita então o diálogo filosófico que estava travando: Os sonhos
serão assim um outro caminho oposto ao niilismo do Budismo. E um outro caminho
de ascese. Uma outra prática e aprendizagem de despojamento do nosso eu
aparente, visto como o único e verdadeiro, através duma primeira e falsa
identificação. Despojamento que é incessante aproximação duma essência
transcendente; caminho para a possessão da certeza da nossa imortalidade.
Os sonhos são assim apresentados
como uma possibilidade de defrontar face a face o real transcendente,
constituindo uma das maiores aberturas sobre a surnatureza, o outro mundo, (...)
um momentâneo rasgo da parede de opacidade que nos tapa o outro lado, afim
do conhecimento poético e da iluminação. A recusa budista da
vida, marcada pela angústia e o desespero, seria assim superada pela via
saudosa, definida como humilde e amante aceitação da vida. O Nirvana,
como estado de alegria extrema pelo desespero extremo, atingido quando se
renuncia a apreender a vida e com ela a si próprio, como eu, terá como pólo
oposto a apaziguada sabedoria da iluminação expressa por Camões. A mesma
ideia irá ser repetida em uma outra obra sua, afastando-se do anteriormente
assumido encontro de tradições e propondo agora, de forma um tanto esquemática,
uma clara preferência e uma exclusiva opção: conhecer o que só o
Cristianismo trouxe, e nele o franciscanismo, altamente proclamou, como saber e
poder de viver na terra, na alegria da união com ela, pelo seu amor, onde tudo
é ultrapassado. Onde ela é possuída, mas de forma tão desligada, independente.
Então, Buda será vencido pela saudade». In Rui Lopo, A leitura do Budismo
na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos, Universidade de Lisboa, Associação
Agostinho da Silva, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.
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