A Vida do Cérebro
«A maior parte das pessoas não pensa na sabedoria ou, em moldes similares,
na competência ou na perícia como categorias biológicas, no entanto, elas
inserem-se nesse grupo. A maioria das pessoas compreende, em termos vagos e
genéricos, que a nossa mente é o produto do nosso cérebro. Mas não é assim tão
simples perceber quão íntima é essa relação, Apesar de reconhecem a relação
entre a mente e o cérebro como uma proposição abstracta, a maioria das pessoas
não a entende como algo quotidiano. Trata-se de um vestígio recalcitrante do ‘dualismo
mente-corpo’, uma doutrina filosófica intimamente associada ao nome de
René Descartes, muito embora alguns alunos de Filosofia digam que é uma associação
injusta, segundo a qual o cérebro e a mente estão separados e a emente existe independentemente
do corpo. Inúmeros livros foram escritos sobre este assunto, incluindo as
excelentes obras ‘O Erro de Descartes’,
de António Damásio, e ‘The Blank Slate’,
de Steven Pinker. A inabilidade secular em reter a ideia de que a mente é
produto do corpo inspirou imagens duradouras do homúnculo, uma pequena criatura
dentro do nosso cérebro que realiza a árdua tarefa de pensar, e a do ‘fantasma
dentro da máquina’.
No livro, ‘The Executive Brain’,
lamentei o facto de, apesar de ‘actualmenre uma sociedade literata já não
acreditar no dualismo cartesiano entre o corpo e a mente, nos libertarmos por
fases dos vestígios da velha concepção errada’ e continuarmos a ter dificuldade
em subscrever completamente a ideia da unidade cérebro-mente quando nos
debruçamos sobre a vida mental em todo o seu espectro.
Fiquei surpreendido, mesmo chocado, ao descobrir quão frágil e
superficial é tantas vezes esta noção. Tornou-se flagrante quando, há poucos anos,
eu e alguns colegas decidimos levar a cabo uma série de palestras de
esclarecimento sobre o cérebro intitulada ‘O Instinto da Mente e do Cérebro’. O
propósito destas palestras era informar o público em geral acerca dos aspectos
básicos da neurologia, das perturbações que afectam o cérebro, da forma como
podem atacar a mente e também sobre os actuais tratamentos para as diversas
desordens cerebrais. Para nosso grande espanto, a reacção do público foi muitas
vezes a de incompreensão.
- O que é que a mente tem a ver com o cérebro? Foi a questão retórica que ouvi mais do que uma vez, para minha descrença absoluta. De forma similar, quando mencionei o cérebro numa palestra pública sobre a memória, surgiu entre a assistência uma questão, num tom de consternação e não tanto de curiosidade genuína: O que é que a memória tem a ver com o cérebro?
Porém, ainda mais incrível foi a incompreensão similar demonstrada por um
público muito mais elitista com que me deparei quando fui convidado a
participar num simpósio com muitos patrocínios dedicado aos segredos dos feitos
extraordinários. O painel do simpósio era constituído por homens de sucesso,
cientistas de renome mundial, líderes empresariais, campeões olímpicos, artistas
famosos e destacadas figuras políticas. Um a um, estes incontestados ‘campeões’ nas suas áreas de desempenho
desfilaram pelo pódio partilhando o seu discernimento sobre os segredos dos
seus próprios feitos. Estabeleceu-se rapidamente o consenso de que a chave para
o sucesso era a convergência de dois factores: o talento numa área
específica foi identificado unanimemente como uma das razões do sucesso. A
presença de certos traços de personalidade, tais como a motivação e a
capacidade de concentração num objectivo distante no tempo, foi identificada,
com igual unanimidade, como o segundo factor. Os participantes no simpósio
concordaram que, sem um talento especial, não pode existir qualquer proeza
significativa e que este talento especial é algo que nasce com cada um, o destino
biológico de poucos. Sobretudo, todos aceitaram como um dado adquirido que o
trabalho árduo por si só não torna uma pessoa num Mozart, num Shakespeare
ou num Einstein. Os outros ingredientes para alcançar um sucesso
excepcional a motivação e ambição, ficavam ao critério do indivíduo, tal
como foi defendido consecutivamente por cada um dos oradores, como se as
pessoas em causa fossem entidades platónicas e etéreas.
Quando chegou a minha vez, tentei transmitir a ideia de que a ‘motivação’ e a ‘capacidade de nos centrarmos num objectivo sublime’, eram também
atributos com base biológica, pelo menos em parte, e que uma das razões pelas
quais as pessoas diferem nestas características se deve ao facto de os seus
cérebros serem diferentes. A personalidade, afirmei tal como anteriormente
diante de públicos diversos, não é uma característica ‘extracraniana’. É um produto
do próprio cérebro». In Elkhonon Goldberg, O Paradoxo da Sabedoria, 2005, Forum
da Ciência, PE-A, 2008, ISBN 978-972-1-05857-6.
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