domingo, 5 de maio de 2013

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «Na casa da entrada a mesa coberta com pano negro e folhas de papel e cartões-de-visita, cheios de letras. Um pobre deixou dinheiro na bandeja, costumavam fazer isso entre eles. Eram amigos nessa altura e todos os criados da lavoura»

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Mãe
«(…) Mar com ilhas estreitas, alongadas, cor de sombra e de carne, mar de vidro, aquário nítido, próximo, percorrido de vento e, até ao horizonte calmo curvo porto de abrigo, uma baía, apesar de todos os tormentos e martírios, apesar de guerra e fome e peste, a vida viu, uma vez mais, surgir a nua luz do dia; esta é a casa em que desperto; esta a hora; a casa está em ruína, as paredes desfazem-se; casa antiga; entra-se; a escada hoje apenas sombra; depois do primeiro andar segue em vertigem por aí acima povoada dos passos das gerações passadas; tudo ausente derradeira derrota; a comprida sacada sob o frontão triangular abre-se para a planície no além do largo; dentro da sala do candelabro, dos quadros e do espelho, o frio dos móveis arrepiou a vida; um vento duro estremece as vidraças durante o dia todo assustadoramente; odeio o vento; nesta sala eles viveram, jovens de cabelos brilhantes longos densos, raparigas de pequenos peitos e de triste olhar, quase velho, mordendo a sua noite e caminhando ao lado desgraça pelos corredores, cozinhas, caves, dispensas em que se falava a língua do terror; mais tarde a da revolta; criadas querendo e temendo os patrões impudentes; no escritório de baixo, apainelado, houve pela primeira vez uma nódoa de sangue; ali esteve a doida, gradeada em ódio, às escuras para não convidar os homens que na rua passavam, tantos anos seguidos que, por fim, ninguém dela falava; jamais gritou; haviam-lhe cortado as cordas da garganta; lembro-me do dia em que morreu; tinha eu sete anos; era por certo já maior que ela, tão mirrada, tão escura, tão nojenta; vieram acordar-me numa manhã como esta, abriram só a fisga da janela e disseram: a tia-avó morreu: qual tia-avó? A louca; neste seu só nome vinha o desprezo e o alívio; vestiram-me de preto igual a ela, éramos duas irmãs; tinha o cabelo escuro semelhante ao meu; chegou gente de fora, entravam e saíam, falavam em segredo; fui obrigada a dar a volta à sala para que as senhoras me beijassem e me fizessem festas; na casa da entrada a mesa coberta com pano negro e folhas de papel e cartões-de-visita, cheios de letras; um pobre deixou dinheiro na bandeja, costumavam fazer isso entre eles; eram amigos nessa altura e todos os criados da lavoura foram à tarde no enterro; hoje as coisas mudaram; não sei se a rapariga já voltou da praça; tenho de ir à cozinha ver como as coisas correm.

André
Como as coisas correm; calmas correm; tanto quanto sei a génese do dia, eu estava ali num mundo hostil e morno e as paredes duma brancura alva cegavam como sóis nos olhos sempre abertos; movimentos lentos, o suor cansado; um peso entrando pela raiz dos cabelos sobre a testa franzida, sobre os lábios; de repente um vento gelado por não sei onde entrando, despenteando a calma, abrindo ambas as abas do casaco como asas, enfunando as costas até fazer corcunda; o carro parara num plano inclinado de quase oitenta graus, sem que eu o desligasse embora cheio de sono; tudo me estava ocluso dentro do mundo à roda, a estrada multiplicava--se em grandes vagas de lume sob o sol; travão de pé no fundo e embraiagem; recordo o acordo para meter a primeira, porém puxei com força a alavanca do travão de mão; seguro o automóvel, motor em andamento». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT