terça-feira, 1 de abril de 2014

Inês de Castro Da Tragédia ao Melodrama Nair de Nazaré Soares. «E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assim como Adriana e Dido [...] respondesse que nom fallamos em amores compostos [...] mas fallamos daqueles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fundamento teem sobre verdade»


jdact e costapinheiro

Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«[…] A philantropia, a praotes, a doçura, ou melhor, a atitude adequada a todas as circunstâncias humanas, tal como a define Jaqueline de Romilly, na sua obra La douceur dans la pensée grecque, tem-nas (fulano de tal), por natureza, por formação familiar, por educação moral e intelectual. É o legado espiritual do seu Prometeu! Platão, na República, o mais extenso dos seus diálogos, confessa, pela voz das personagens, que a sua República não existe, não é do mundo real, uma vez que não se situa em parte alguma da Terra, pelo menos como ele a imagina. Mas no céu existe talvez um modelo dela! Thomas More, pela mão de Platão e de Santo Agostinho, torna-a real. Essa cidade, de parte alguma, a Nusquam existe. Afirma-o, no livro II da Utopia, o português Hythlodeu, porque eu vivi lá! Perguntei-te um dia, (fulano de tal), o que querias que te trouxesse aqui Foste espontânea e sincera. Fala-me de Inês de Castro! Gosto tanto da Castro! Desde … que me apaixonei por António Ferreira. Além de António Ferreira tive outras paixões: Garrett, Victor Hugo… Que interessante, pensei eu, todos três trataram do tema inesiano: da tragédia ao melodrama. Trago-te agora aqui esta reflexão e que ela sirva, de algum modo, para ambas, ainda que modestamente, celebrarmos o ano inesiano, em que se comemoram os 650 anos da morte daquela mísera e mesquinha/ que depois de morta foi rainha.
O episódio dos amores infelizes de Pedro e Inês que o génio lírico do nosso trágico e do nosso épico quinhentistas, Ferreira e Camões, imortalizaram, depressa se vê envolvido pelo manto diáfano da poesia, assumindo-se como tema de idiossincrasia mais perfeita com radicação no país, antes do Sebastianismo. Desde as crónicas quatrocentistas, as Trovas de Garcia de Resende, a Visão de Anrique Mota, a tradição popular, que a imaginação e a sensibilidade estética de diversos autores transfiguram e recriam o tema inesiano e fazem-no ascender a um plano por assim dizer lendário e intemporal, paralelo ao da fábula grega. O próprio Fernão Lopes encarece a aura mítica de Inês que merece maiores honras do que as heroínas da poesia e da mitologia clássicas, Ariadne e Dido.

NOTA: Neste códice, está a designada Crónica de Manizola e a Visão de Dona Inês de Anrique da Mota, descrição poética que, com as Trouas ˜q; Garçia de rresende fez a morte de dõa Ynes de Castro, insertas no Cancioneiro Geral, serve de elo de ligação entre os textos cronísticos e a obra de Ferreira. Fernão Lopes, Crónica do Senhor dom Pedro oitavo rei destes regnos, Porto, 1986: Por que semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhum he tam verdadeiramente achado como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assim como Adriana e Dido [...] respondesse que nom fallamos em amores compostos [...] mas fallamos daqueles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fundamento teem sobre verdade. Mas nem só pela sua veracidade os amores de Inês e Pedro são superiores aos que a mitologia consagra. Pode acrescentar-se ainda que, do ponto de vista dramático, nos dois exemplos apontados por Fernão Lopes, as heroínas são abandonadas conscientemente pelos seus amados, Teseu e Eneias, em razão de forças imperiosas, como o desejo de glória ou o cumprimento do dever. O abandono de Pedro é involuntário e inconsciente, o que dá à história uma maior dimensão trágica e a torna mais capaz de concitar a emoção do público.

A par das descrições objectivas de Fernão Lopes e Rui de Pina, a Crónica de Manizola enfatiza a beleza de Inês, colo de garça, a sua boa geraçam, a celebração do casamento, que Pedro não confessara, porque a chave deste segredo tinha deitado no mar, os presságios de Inês, a culpa dos conselheiros e a consequente atenuação da de Afonso IV, a união dos enamorados que jazem ambos os dous juntos por que ja que se apartaram na morte ficassem juntos nas sepulturas. Na Crónica de Acenheiro, a idealização da figura de Inês surge filtrada através dos argumentos que aduz em sua defesa, na presença do rei: a sua inocência, a orfandade dos filhos de Pedro e Inês, seus netos, a tristeza que traria ao príncipe a morte da amada. Além das advertências, de feição moralizante, sobre os riscos do amor, nas Trovas de Resende, o tratamento do tema, embelezado esteticamente com elementos petrarquistas, adquire profundidade e intimismo característicos da poesia quinhentista. Assim se pode verificar que muitos dos motivos e recursos dramáticos de Ferreira, na Castro, já se encontravam elaborados nos textos, em prosa e em verso, que a precederam. Não quer isto dizer que o nosso tragediógrafo desmereça, por esta razão, em originalidade. Pelo contrário, reside precisamente nesta escolha do tema e na sua teatralização a marca da sua actualidade, da sua novidade estética, dentro dos padrões de sensibilidade da época.
Albertino Mussato, o precursor de Petrarca, tinha em 1314 composto e lido publicamente a Ecerinis, a primeira tragédia moderna de inspiração senequiana, de assunto nacional contemporâneo, que se tornaria mentora, no Renascimento, de um tipo de tragédia que já existia nas literaturas grega e latina. O drama histórico, apesar do carácter poético-lendário de que se revestia a verdade histórica, atraía os gostos dos poetas de toda a Europa, da Itália à França, à Inglaterra, a Portugal, que glosaram, por vezes, os mesmos temas e dentro dos mesmos moldes. O fascínio da história da Antiguidade e da história pátria, que caracterizou o movimento humanista, aliado a um intercâmbio cultural e mesmo geográfico entre os diversos autores, explica o tema comum de muitas tragédias por toda a Europa.

NOTA: Iulius Caesar de Muret e Jules César de Jacques Grévin, que é uma imitação daquela em língua francesa, Didon de Du Bellay e Cléopâtre captive de Jodelle, ambas com paralelo em tragédias do mesmo nome de Giraldi Cinzio. É na Cleopatra de Cinzio que se inspiram também a de Sá de Miranda e a do inglês Marlowe. O magistério de mestres comuns, nos diversos colégios universitários europeus, desempenhou um papel de relevo nas origens e evolução da arte dramática, bem como na formação dos gostos estéticos, tanto em Portugal como além-fronteiras. Exemplo disso, entre nós, são as tragédias novilatinas de Diogo de Teive, ou ainda a produção dramática de George Buchanan, levada à cena em Bordéus, Paris, Coimbra e Cambridge, onde ensinou. O poeta escocês é autor, além de peças de assunto bíblico, Baptistes e Jephtes, de traduções latinas livres de Eurípides, Medea e Alcestis, que António Ferreira teria visto representar.

In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT