Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«[…] A philantropia, a praotes, a doçura,
ou melhor, a atitude adequada a todas as circunstâncias humanas, tal como a
define Jaqueline de Romilly, na sua obra La douceur dans la pensée grecque, tem-nas (fulano de tal),
por natureza, por formação familiar, por educação moral e intelectual. É o
legado espiritual do seu Prometeu!
Platão, na República, o mais
extenso dos seus diálogos, confessa, pela voz das personagens, que a sua República não existe, não
é do mundo real, uma vez que não se situa em parte alguma da Terra, pelo menos
como ele a imagina. Mas no céu existe talvez um modelo dela! Thomas More,
pela mão de Platão e de Santo Agostinho, torna-a real. Essa
cidade, de parte alguma, a Nusquam existe. Afirma-o, no livro II
da Utopia, o português Hythlodeu,
porque eu vivi lá! Perguntei-te um
dia, (fulano de tal), o que querias que te trouxesse aqui Foste espontânea e
sincera. Fala-me de Inês de Castro!
Gosto tanto da Castro! Desde … que
me apaixonei por António Ferreira. Além de António Ferreira tive outras
paixões: Garrett, Victor Hugo… Que interessante, pensei eu, todos três
trataram do tema inesiano: da tragédia ao melodrama. Trago-te agora aqui esta
reflexão e que ela sirva, de algum modo, para ambas, ainda que modestamente,
celebrarmos o ano inesiano, em que se comemoram os 650 anos da morte daquela
mísera e mesquinha/ que depois de morta foi rainha.
O episódio dos amores
infelizes de Pedro e Inês que o
génio lírico do nosso trágico e do nosso épico quinhentistas, Ferreira e Camões, imortalizaram,
depressa se vê envolvido pelo manto diáfano da poesia, assumindo-se como tema
de idiossincrasia mais perfeita com radicação no país, antes do Sebastianismo. Desde
as crónicas quatrocentistas, as Trovas de Garcia de Resende,
a Visão de Anrique Mota, a tradição popular, que a
imaginação e a sensibilidade estética de diversos autores transfiguram e
recriam o tema inesiano e fazem-no ascender a um plano por assim dizer lendário
e intemporal, paralelo ao da fábula grega. O próprio Fernão Lopes encarece a
aura mítica de Inês que merece
maiores honras do que as heroínas da poesia e da mitologia clássicas, Ariadne
e Dido.
NOTA: Neste códice, está a designada Crónica de
Manizola e a Visão de Dona Inês de Anrique da Mota, descrição
poética que, com as Trouas ˜q; Garçia de rresende fez a morte de dõa Ynes de
Castro, insertas no Cancioneiro Geral, serve de elo de ligação entre
os textos cronísticos e a obra de Ferreira. Fernão Lopes, Crónica do
Senhor dom Pedro oitavo rei destes regnos, Porto, 1986: Por que
semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma
pessoa, porem disserom os antiigos que nenhum he tam verdadeiramente achado
como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum
disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assim como Adriana e
Dido [...] respondesse que nom fallamos em amores compostos [...] mas fallamos
daqueles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fundamento teem
sobre verdade. Mas nem só pela sua veracidade os amores de Inês e Pedro são
superiores aos que a mitologia consagra. Pode acrescentar-se ainda que, do
ponto de vista dramático, nos dois exemplos apontados por Fernão Lopes, as
heroínas são abandonadas conscientemente pelos seus amados, Teseu e Eneias, em razão de forças imperiosas, como o desejo de
glória ou o cumprimento do dever. O abandono de Pedro é involuntário e
inconsciente, o que dá à história uma maior dimensão trágica e a torna mais
capaz de concitar a emoção do público.
A par das descrições
objectivas de Fernão Lopes e Rui de Pina, a Crónica de Manizola
enfatiza a beleza de Inês, colo
de garça, a sua boa geraçam, a celebração do
casamento, que Pedro não confessara,
porque
a chave deste segredo tinha deitado no mar, os presságios de Inês, a culpa dos conselheiros e a
consequente atenuação da de Afonso IV, a união dos enamorados que jazem
ambos os dous juntos por que ja que se apartaram na morte ficassem juntos nas
sepulturas. Na Crónica de Acenheiro, a idealização da
figura de Inês surge filtrada
através dos argumentos que aduz em sua defesa, na presença do rei: a sua inocência, a orfandade dos filhos
de Pedro e Inês, seus netos, a tristeza que traria ao príncipe a morte da amada.
Além das advertências, de feição moralizante, sobre os riscos do amor, nas Trovas
de Resende, o tratamento do tema, embelezado esteticamente com elementos
petrarquistas, adquire profundidade e intimismo característicos da poesia
quinhentista. Assim se pode verificar que muitos dos motivos e recursos
dramáticos de Ferreira, na Castro, já se encontravam
elaborados nos textos, em prosa e em verso, que a precederam. Não quer isto
dizer que o nosso tragediógrafo desmereça, por esta razão, em originalidade.
Pelo contrário, reside precisamente nesta escolha do tema e na sua teatralização
a marca da sua actualidade, da sua novidade estética, dentro dos padrões de
sensibilidade da época.
Albertino Mussato,
o precursor de Petrarca, tinha em 1314
composto e lido publicamente a Ecerinis, a primeira
tragédia moderna de inspiração senequiana, de assunto nacional contemporâneo,
que se tornaria mentora, no Renascimento, de um tipo de tragédia que já existia
nas literaturas grega e latina. O drama histórico, apesar do carácter
poético-lendário de que se revestia a verdade histórica, atraía os gostos dos
poetas de toda a Europa, da Itália à França, à Inglaterra, a Portugal, que
glosaram, por vezes, os mesmos temas e dentro dos mesmos moldes. O fascínio da
história da Antiguidade e da história pátria, que caracterizou o movimento
humanista, aliado a um intercâmbio cultural e mesmo geográfico entre os diversos
autores, explica o tema comum de muitas tragédias por toda a Europa.
NOTA: Iulius Caesar de
Muret e Jules César de Jacques Grévin, que é uma imitação daquela em língua
francesa, Didon de Du Bellay e Cléopâtre captive de Jodelle,
ambas com paralelo em tragédias do mesmo nome de Giraldi Cinzio. É na Cleopatra
de Cinzio que se inspiram também a de Sá de Miranda e a do inglês Marlowe.
O magistério de mestres comuns, nos diversos colégios universitários europeus,
desempenhou um papel de relevo nas origens e evolução da arte dramática, bem
como na formação dos gostos estéticos, tanto em Portugal como além-fronteiras.
Exemplo disso, entre nós, são as tragédias novilatinas de Diogo de Teive, ou
ainda a produção dramática de George Buchanan, levada à cena em Bordéus, Paris,
Coimbra e Cambridge, onde ensinou. O poeta escocês é autor, além de peças de
assunto bíblico, Baptistes e Jephtes, de traduções latinas livres
de Eurípides, Medea e Alcestis, que António Ferreira teria visto representar.
In Nair Nazaré Castro Soares, Inês
de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de
Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.
Cortesia da
FLUPorto/JDACT