Fazer a História das Misericórdias
«As misericórdias ou
Santas Casas da Misericórdia são inequivocamente uma das mais genuínas expressões
da identidade, da cultura e da história de Portugal e da lusofonia. Se, como
terá dito Alexandre Herculano, não é possível escrever a história de
Portugal sem as misericórdias, tão-pouco é possível compreender e preservar a
identidade e potenciar as capacidades destas ímpares instituições sem recurso à
sua própria história, escrínio da rica cultura institucional e do acervo de valores
que lhes está subjacente e se foi caldeando com o decurso dos tempos e a
sucessão de múltiplas gerações e vivências. A história da saúde e das doenças
em Portugal, das migrações internas e externas, da propriedade fundiária, da
arte, da religiosidade popular, bem como da pobreza e da luta contra a
exclusão, da assistência e da economia social ou do sistema penal e prisional
no nosso país e noutros espaços da lusofonia, designadamente o Brasil, está em
boa parte contida naquela memória e saber colectivo que se transmitiu no seio
das misericórdias ou se encontra guardado nos seus preciosos arquivos. Consciente
da importância, vastidão e riqueza deste espólio bem como da urgência de o preservar,
ordenar e pôr à disposição dos estudiosos, a União das Misericórdias
Portuguesas, retomando uma ideia há muito surgida no seio das misericórdias
e infelizmente nunca concretizada. Do seu vasto programa de actividades e
iniciativas a elaboração e publicação de uns Portugaliae Monumenta
Misericordiarum. Entendendo por certo que a comemoração pelo livro é a
que maior valor tem, como escrevia Vítor Ribeiro, a propósito das comemorações
do IV Centenário, a União das Misericórdias fomentou a todos os níveis que o V
Centenário ficasse assinalado pela publicação de trabalhos e estudos que estimulem
e permitam um maior e mais sólido conhecimento da natureza, história,
especificidade e potencialidades destas tão portuguesas e universalistas
instituições.
Das várias dezenas de
importantes publicações que surgiram no contexto das comemorações pentacentenárias
consideramos, porém, que a mais importante e fundamental é esta ordenação e colectânea
de monumenta,
ou seja, de documentos que, esperamos e acreditamos, constituirão a base e
o instrumento imprescindível de toda a investigação e produção bibliográfica
sobre as misericórdias em Portugal e no mundo lusófono. Porque a tarefa é larga
e difícil, envolvendo muitas pessoas e instituições durante vários anos, com a
mesma fé com que a propus, agradeço agora à Comissão Nacional para os 500 Anos,
à União das Misericórdias Portuguesas e ao Centro de Estudos de História
Religiosa da Universidade Católica Portuguesa terem posto ombros a tão
ciclópica missão e solicito o apoio de quantos, de qualquer modo, nos puderem
ajudar a levá-la a bom termo. Portugal e as suas misericórdias merecem-no. A
bem de Portugal, da Solidariedade e da Cultura, bem hajam». In Vítor
Melícias.
Introdução
«Pretende-se apresentar o projecto Portugaliae
Monumenta Misericordiarum que com a publicação deste primeiro volume se
desencadeia. Não é minha intenção, nem creio ser este o local apropriado para o
fazer, proceder a uma sinopse, em tom mais ou menos encomiástico, do que tem
sido a acção das misericórdias portuguesas no transcurso dos cinco longos
séculos de existência que algumas delas já patenteiam no seu estatuto de identidade.
Pela originalidade que assumiram no contexto do que foi a prática da
assistência desde os alvores da Época Moderna no espaço europeu. Pela
fortíssima propensão que, em quase todas, sempre existiu para a ajuda aos mais
necessitados, através da concretização dos preceitos evangélicos do amor ao próximo,
materializados em obras concretas de auxílio espiritual e material que
ampararam os encarcerados que esperavam por justiça, atalharam a fome a quem
não tinha que comer, sararam o corpo a quem o tinha doente, protegeram os
meninos abandonados, abrigaram os desabrigados, enterraram os mortos e proporcionaram
consolo e amparo a uma enorme legião de criaturas carentes que por eles
ansiavam. Pela importância decisiva que, sobretudo até ao século XVIII, tiveram
na estruturação e consolidação da sociedade e da rede de poderes locais. Pelo
peso económico que muitas evidenciaram nas comunidades em que se inseriram.
Pela promoção entre vários segmentos leigos da sociedade de uma espiritualidade
centrada no valor dos méritos protectores propiciados por Nossa Senhora da
Misericórdia e no culto da Paixão de Cristo, que se objectivava no amor
confraternal, na compaixão pelos sofrentes, na prática de obras de caridade e
num vasto conjunto de representações exteriores dessa piedade, que atingiram o
seu paroxismo nas procissões de Endoenças, anualmente celebradas na
quinta-feira santa. Pelo riquíssimo e específico espólio artístico que
patrocinaram, em domínios tão variados como a arquitectura, a pintura e a
escultura, e que fazem de algumas delas, nos nossos dias, verdadeiros tesouros
da arte portuguesa. Pelo papel activo que desempenharam na afirmação da
presença portuguesa e da própria autoridade régia nos territórios do que foi o
seu extenso império ultramarino. Pela perpetuação dos laços afectivos entre os
vivos e os mortos por via da instituição de centenas de milhar de missas de
sufrágio, que alimentaram o quotidiano destas confrarias e estimularam uma
piedade escatológica na qual o terceiro lugar, o purgatório, ocupava um espaço
nodal. Pelos mitos que em volta da sua acção e funcionamento tantas vezes se
geraram, justificando esforços redobrados para que se repense a memória que
algumas de si próprias se forjaram e aquela que presentemente delas se
transmite». In José Pedro Paiva, Portugaliae
Monumenta Misericordiarum, Fazer a História das Misericórdias, Centro de
Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, União
das Misericórdias Portuguesas, 2002, ISBN 972-98904-0-4.
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