quarta-feira, 2 de julho de 2014

Portugaliae Monumenta Misericordiarum Fazer a História das Misericórdias José Pedro Paiva. «Vejamos os mais antigos alvarás emitidos pela Coroa a favor da Misericórdia de Lisboa. É notória a sua preocupação com os presos e condenados de justiça: os primeiros dois diplomas autorizavam a confraria a retirar estes últimos da forca…»

Cortesia de wikipedia

Fazer a História das Misericórdias. As Misericórdias da fundação à União Dinástica
«(…) Em tempos de mudança de paradigmas historiográficos, a criação e difusão de misericórdias ganha em ser inserida num contexto mais geral que permita evitar conferir-lhes uma especificidade inexistente. Assim, as doações e privilégios concedidos pelo rei a estas confrarias deverão ser inscritos numa relação do rei com as autoridades locais e os particulares, que incluía por regra a concessão de vantagens materiais, políticas e sociais a grande parte dos agentes em presença e não apenas às misericórdias. Basta um olhar de relance pela legislação emitida a favor do Hospital de Todos os Santos, de tutela régia mas não confraternal, para se perceber que o modo de acção da Coroa era uniforme e não fazia das misericórdias instituições excepcionais no panorama geral. Isentar, beneficiar e privilegiar eram o normal do modus operandi régio. No entanto, a implantação relâmpago de misericórdias com Manuel I, bem como a atribuição a estas de um leque de competências alargado, transforma-as nas confrarias mais poderosas de Portugal ao longo da Idade Moderna.

A criação e estruturação das misericórdias
A Misericórdia de Lisboa foi a primeira a ser fundada. No entanto, não ficou sozinha por muito tempo. Em 1500 a chancelaria de Manuel I dá-nos conta da existência nesse ano das Misericórdias de Santarém, Évora e Setúbal. Em 1502 aparecem na mesma documentação Estremoz, os lugares de Além (expressão que na documentação designa as cidades de Arzila, Tânger, Alcácer e Ceuta), Beja e Elvas; em 1504 as de Moura e Porto, Serpa em 1509. Na década de 1510 temos Coimbra, Tomar, Covilhã, Olivença, Ponta Delgada, Castelo de Vide, Portalegre, Funchal, S. João de Rei, Montemor-o-Novo, Safim e Goa. Nos dois últimos anos do reinado (1520 e 1521) aparecem Barcelos, Almeida, Marvão e Castelo Branco. Fora das chancelarias há documentos que atestam a presença de misericórdias em Angra, Vila da Praia, Lagos e Viana de Foz de Lima, que constituem bons exemplos da ausência de exaustividade desta fonte. Ao todo, e até ao momento, encontra-se documentada a existência de 43 misericórdias no reinado de Manuel I, mas é provável que houvesse outras cuja documentação se perdeu ou não se conhece ainda.
A Misericórdia de Lisboa foi objecto de um número avultado de diplomas régios que estruturavam a sua acção. Seria, todavia, errado presumir que existiu uma intenção de copiar textualmente as normas de Lisboa para as restantes misericórdias. Lisboa detém privilégios próprios, e as outras misericórdias do reino também. Vejamos agora a Misericórdia de Lisboa. Conhecem-se as circunstâncias da sua fundação por D. Leonor, durante a ausência do irmão em Espanha. Tem sido estudado, também, nos trabalhos de Ivo Carneiro Sousa, o contexto devocional que rodeava a figura da rainha, bem como a sua acção em prol das misericórdias. As suas relações com as correntes de espiritualidade tardo-medievais, alicerçadas na devotio moderna e na praxis das ordens mendicantes foram consideradas por este autor como o pano de fundo religioso que explica a formação das misericórdias portuguesas. Ora, sucede que a rainha viúva assinou apenas três diplomas em favor das misericórdias, em Setembro de 1498. Caberia a Manuel I exercer o seu poder político no sentido de as difundir e estruturar a sua actuação, sendo impossível esclarecer se o fez, ou não, por influência da irmã. Afinal, D. Leonor acompanhou todo o seu reinado e sobreviveu à morte de Manuel I em 1521, tendo falecido apenas em 1525. Mas é um facto que o rei se desdobrou em acções em prol das misericórdias. Enviou funcionários com a incumbência de promover a sua fundação pelas cidades do Reino, de que o caso mais conhecido é o de Álvaro Guarda. Escreveu às Câmaras a solicitar a criação da confraria, como no famoso caso da cidade do Porto, estudado por Magalhães Basto. Misericórdias como a de Barcelos referem expressamente que a sua confraria foi ordenada pelo rei. E legislou profusamente a favor da Misericórdia de Lisboa e de outras, a ponto da sua chancelaria ser mais rica que a do sucessor». In Isabel dos Guimarães Sá, José Pedro Paiva, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Fazer a História das Misericórdias, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, ISBN 972-98904-0-4.

Cortesia UMPortuguesas/JDACT