Fazer a História das
Misericórdias. As Misericórdias da fundação à União Dinástica
«(…) Em tempos de
mudança de paradigmas historiográficos, a criação e difusão de misericórdias ganha
em ser inserida num contexto mais geral que permita evitar conferir-lhes uma
especificidade inexistente. Assim, as doações e privilégios concedidos pelo rei
a estas confrarias deverão ser inscritos numa relação do rei com as autoridades
locais e os particulares, que incluía por regra a concessão de vantagens materiais,
políticas e sociais a grande parte dos agentes em presença e não apenas às
misericórdias. Basta um olhar de relance pela legislação emitida a favor do Hospital
de Todos os Santos, de tutela régia mas não confraternal, para se perceber
que o modo de acção da Coroa era uniforme e não fazia das misericórdias instituições
excepcionais no panorama geral. Isentar, beneficiar e privilegiar eram o normal
do modus operandi régio. No entanto, a implantação relâmpago de
misericórdias com Manuel I, bem como a atribuição a estas de um leque de
competências alargado, transforma-as nas confrarias mais poderosas de Portugal
ao longo da Idade Moderna.
A criação e estruturação das misericórdias
A Misericórdia de Lisboa foi a primeira a ser fundada. No
entanto, não ficou sozinha por muito tempo. Em 1500 a chancelaria de Manuel I dá-nos conta da existência nesse ano
das Misericórdias de Santarém, Évora e Setúbal. Em 1502 aparecem na mesma documentação Estremoz, os lugares de Além
(expressão que na documentação designa as
cidades de Arzila, Tânger, Alcácer e Ceuta), Beja e Elvas; em 1504 as de Moura e Porto, Serpa
em 1509. Na década de 1510 temos Coimbra, Tomar, Covilhã,
Olivença, Ponta Delgada, Castelo de Vide, Portalegre,
Funchal, S. João de Rei, Montemor-o-Novo, Safim e Goa. Nos dois últimos
anos do reinado (1520 e 1521) aparecem Barcelos, Almeida,
Marvão e Castelo Branco. Fora das chancelarias há documentos que
atestam a presença de misericórdias em Angra, Vila da Praia, Lagos e Viana
de Foz de Lima, que constituem bons exemplos da ausência de exaustividade
desta fonte. Ao todo, e até ao momento, encontra-se documentada a
existência de 43 misericórdias no reinado de Manuel I, mas é provável
que houvesse outras cuja documentação se perdeu ou não se conhece ainda.
A Misericórdia de
Lisboa foi objecto de um número avultado de diplomas régios que
estruturavam a sua acção. Seria, todavia, errado presumir que existiu uma
intenção de copiar textualmente as normas de Lisboa para as restantes misericórdias.
Lisboa detém privilégios próprios, e as outras misericórdias do reino também. Vejamos
agora a Misericórdia de Lisboa. Conhecem-se as circunstâncias da sua fundação
por D. Leonor, durante a ausência do irmão em Espanha. Tem sido
estudado, também, nos trabalhos de Ivo Carneiro Sousa, o contexto devocional
que rodeava a figura da rainha, bem como a sua acção em prol das misericórdias.
As suas relações com as correntes de espiritualidade tardo-medievais,
alicerçadas na devotio moderna
e na praxis das ordens mendicantes foram consideradas por este autor
como o pano de fundo religioso que explica a formação das misericórdias
portuguesas. Ora, sucede que a rainha viúva assinou apenas três diplomas em
favor das misericórdias, em Setembro de 1498.
Caberia a Manuel I exercer o seu poder político no sentido de as difundir e
estruturar a sua actuação, sendo impossível esclarecer se o fez, ou não, por
influência da irmã. Afinal, D. Leonor acompanhou todo o seu reinado e
sobreviveu à morte de Manuel I em 1521,
tendo falecido apenas em 1525. Mas é
um facto que o rei se desdobrou em acções em prol das misericórdias. Enviou
funcionários com a incumbência de promover a sua fundação pelas cidades do
Reino, de que o caso mais conhecido é o de Álvaro Guarda. Escreveu às Câmaras a
solicitar a criação da confraria, como no famoso caso da cidade do Porto,
estudado por Magalhães Basto. Misericórdias como a de Barcelos referem
expressamente que a sua confraria foi ordenada pelo rei. E legislou profusamente
a favor da Misericórdia de Lisboa e de outras, a ponto da sua chancelaria
ser mais rica que a do sucessor». In Isabel
dos Guimarães Sá, José Pedro Paiva, Portugaliae Monumenta
Misericordiarum, Fazer a História das Misericórdias, Centro de Estudos de
História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, União das
Misericórdias Portuguesas, 2002, ISBN 972-98904-0-4.
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