«Primeiro, tentaram os amigos
enaltecer-lhe a morte: por tiros no peito com uma criança no ventre, como se
fosse preciso aumentar a gravidade do assassínio e a culpa do autor da rajada a
sangue-frio. Depois, tentaram os homens do Estado Novo apagar-lhe a memória, inventando
um acidente entre militares armados e mulheres de mãos vazias. O facto é que Catarina
Eufémia de Baleizão foi assassinada no dia 19 de Maio de 1954, na aldeia vermelha do Alentejo que deu o apelido à sua família paterna.
Catarina, a camponesa que, para políticos e poetas, se tornou um símbolo da luta
contra a ditadura, foi morta por um tenente da Guarda Nacional Republicana. Morta
por dois escudos, o preço de um pão de quilo. Dada a tendência para a revolta, os
baleizoeiros já haviam sofrido na pele os abusos da velha Guarda Municipal do
tempo do rei Pedro IV, rebaptizada de Guarda Republicana quando a Monarquia caiu,
a 5 de Outubro de 1910, e designada
GNR no ano seguinte. Catarina e os conterrâneos conheciam de sobra as práticas desta
espécie de braço armado do regime, encarregado de estabelecer a ordem, mesmo na
ausência de qualquer desordem: já um dos seus fora torturado e morto, já tinham
querido fazer-lhes engolir um suicídio por um assassínio às mãos de torturadores,
até já haviam sido espancados por não tirarem o chapéu a um comandante de posto
que gostava de ser cumprimentado na rua de modo respeitoso...
No dia da sua morte ainda permanecia
na memória dos mais velhos o assassínio de outra baleizoeira . Fazia trinta e sete
anos que, aproveitando-se da escassez de alimentos provocada pela I Guerra Mundial,
os endinheirados açambarcavam farinha para lhe fazerem subir o preço. E o povo
revoltou-se. Palmira Graça, de trinta e cinco anos, foi morta a tiro, e duas
mulheres e um homem ficaram feridos nessa noite de 19 de Junho de 1917,quando o povo de Baleizão
enfrentou a autoridade. A Guarda fora chamada para impedir que alguém entrasse no
armazém da estação de caminho-de-ferro e levasse os sacos de cereais comprados ao
desbarato. Palmira morreu, mas não em vão: os revoltosos passaram a comprar farinha
sem intermediários.
No mês de Maio de 1954, Baleizão ficou parada. Os jornaleiros
recusavam-se a sair para os campos, considerando demasiado baixa a jorna estabelecida
pelos proprietários das terras. A discórdia cifrava-se em dois escudos, mais
ou menos dois dias da dose de pão de uma pessoa, pois o pão, comido seco, com azeite
ou em açorda, consistia por vezes no único alimento de uma família: os que nada
tinham só comiam se o conseguissem comprar, os remediados faziam-no em casa, coziam-no
de oito em oito dias, a uma média de quatro quilos por cabeça; amassavam-no à noite,
pela manhã estava pronto. Catarina amassava e punha o pão a cozer depois de chegar
do trabalho rural. O dinheiro que o marido ganhava como cantoneiro não chegava.
Tinham três filhos; além de tratar
deles e das tarefas domésticas, a ela só lhe restava o campo para ganhar alguns
tostões. E tentava acompanhar o ciclo, começando em Janeiro e indo até Maio na monda
do trigo, entrando de seguida na ceifa da fava, talvez na da cevada e da aveia,
indo até Julho, quando começava a ceifa do trigo. De Outubro a Dezembro era a apanha
da azeitona. Mas Catarina nem sempre conseguia trabalho: nas saídas em grupo
privilegiava-se a família, portanto os angariadores levavam primeiro os seus e
só depois outra vizinhança. Nestes anos 50 do século XX, vivia-se muito mal.
Portugal era um país pobre, pouco desenvolvido. Orgulhosamente sós, era uma das frases preferidas do ditador e (sem
escrúpulos) António Oliveira Salazar, que governou com mão-de-ferro, desde 1933
até 1968, todo o território nacional daquém e dalém-mar. Dava a ditadura os
primeiros passos quando Catarina nasceu, no dia 13 de Fevereiro de 1928, embora na sua certidão conste a data
de 18 de Abril. Talvez o pai se tenha atrasado e assim haja evitado pagar a multa
pelo registo fora do prazo. Tratava-se de uma prática habitual: uma dezena
de anos antes, o pai de Lúcia Santos, a chamada Vidente de Fátima, terá feito o mesmo. E é apenas um exemplo». In
Anabela Natário, Portuguesas com História, Século XX, Catarina Eufémia, Círculo
de Leitores, 2008, ISBN 978-972-424-207-1.
Cortesia de Círculo de Leitores/JDACT