“A pintura está demasiado fresca para sobre ela dizer mais; acabei agora
mesmo de pousar a broxa e de voltar costas à tela”.
Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«Encontro em Freud, que estou a ler por acaso, um passo que me pode
interessar. Está na Autobiografia
escrita em1924, numa altura em que a
psicanálise já chegara à idade adulta, ou mesmo madura, e em que era fácil ao
autor rememorar em sinopse, sem explicações demoradas e sem recurso à descrição
pormenorizada de casos empíricos, tão comum na fase inicial, os passos do
aparecimento e do primeiro desenvolvimento da teoria psicanalítica. Ao tratar
do período relativo à colaboração com Breuer, e o apogeu aconteceu em 1895, ano da edição de Estudos sobre a Histeria, Freud aponta o
momento em que formulou a noção de inconsciente
psíquico como decisiva para a passagem do método catártico tal como Breuer
o praticava a partir da hipnose, libertação dos sintomas patológicos da nevrose
através da rememoração verbal deles, ao método analítico. O que aqui me
interessa não é o que pode haver de específico neste, quer dizer, a etiologia
sexual das nevroses tal como a análise
as detectou, mas muito mais o espaço intervalar entre os dois momentos. No
intervalo, como ponte de passagem, encontro a teoria do recalcamento, em que conteúdos
manifestos, até aí admitidos na consciência vigilante, são expulsos desta,
retraindo-se num segundo compartimento, onde permanecem latentes e sem
existência aparente. O facto desses novos conteúdos procurarem resistir ao
recalcamento, forçando caminho para regressarem às manifestações de superfície,
levou Freud a elaborar a ideia duma segunda
consciência, interdita à primeira, ao menos de forma aberta e livremente reconhecida,
mas não por isso menos viva e actuante. A noção de inconsciente psíquico,
crucial ao nascimento da psicanálise, foi deduzida desta ideia duma segunda consciência, onde actuam, vivem
e se desenvolvem os conteúdos latentes, desconhecidos da primeira consciência.
Retenho pois a ideia duma segunda
consciência, que, existindo com realidade própria, inexorável, é porém um
território defeso e desconhecido à primeira,
a única que tem lembrança e noção de si, pelo menos como se entende de forma
vulgar esta noção de si. A ideia duma
dupla consciência, duma segunda instância desconhecida ao pensar do dia-a-dia,
uma consciência inconsciente para
usar a expressão de Freud, interessa-me muito para abordar um livro de Teixeira
de Pascoaes dado a lume em edição magra de autor no ano de 1942, Duplo Passeio. Mas antes de falar do livro de Pascoaes talvez valha a pena
dizer que em Platão, citado na Autobiografia
de 1924 como o mais antigo elo do
trabalho analítico, ou em textos dele, como Fedro,
o composto humano resulta da sobreposição de dois planos distintos, que nunca
se fundem por inteiro, corpo e alma, o primeiro pertença absoluta da natureza
terrestre e o segundo chegado de paragens distantes ou ignoradas. Em Platão
estes dois planos, o da alma e o do corpo, aparecem referidos ao mundo das
ideias, luminoso e esplêndido, e ao da caverna escura, onde as coisas materiais
surgem como apagadas sombras das ideias. Camões glosou em vários passos esta
visão duma alma alienígena aprisionada num vaso de argila que não lhe corresponde.
Na glosa camoniana a Terra é uma estação que fabrica vestes materiais ao fogo
luminoso que receberá, mas vestes desajustadas, já que opacas, à natureza
translúcida da essência imaterial. Daí a noção de exílio que a alma vive na Terra
junto do corpo, quer dizer, a incomodidade, a estranheza e a dificuldade que
ela sente num meio tóxico e corruptível que não é o seu». In António Cândido Franco, Notas para
a Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora
Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.
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