terça-feira, 3 de setembro de 2013

O Confronto do Olhar. O Encontro dos Povos na Época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha e Luís Albuquerque. «De notar que a cena de canibalismo se encontra, com igual poder de fantasia, na fl. 5 do “atlas de Diogo Homem, de 1568”, que está hoje muito deteriorada numa biblioteca de Dresden»

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Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
«(…) Sob este aspecto, a cartografia portuguesa desse tempo está por estudar, embora alguns ensaios inéditos dela se tenham ocupado. Na fl. 2 do atlas Miller (de 1519) representa-se parte do Oriente, incluindo a Arábia, as penínsulas industânica e indochinesa. Os desenhos-representativos são em número elevado: cidades, o túmulo de Maomé, localizado numa Meca bem no interior da Arábia, árvores de vários tipos desconhecidos em Portugal, predominam as palmeiras, animais de habitat ou suposto habitat local camelos na Arábia, um leão na Pérsia, um rinoceronte nas proximidades do Tibete, dois elefantes no Norte da Índia e uma ave não identificável na área da Birmânia); para além disso, um cavaleiro correndo à desfilada na Etiópia, e guerreiros de espada e escudo na Arábia e na Índia (distinguem-se pelo vestuário).
Na fl. 4 do mesmo atlas, com a representação do Brasil, abundam as aves de plumagens de cores variadas (que tanto agradaram aos europeus); mas o cartógrafo também desenhou um símio, uma onça e um mítico glifo; a par disso, árvores-do-brasil, algumas já decepadas e cujos índios nus racham ou carregam, e ainda mais indios de saiotes e perucas de penas, esboçados com um realismo que pode ainda hoje ser comprovado. Noutra folha desse precioso conjunto de cartas vêem-se na zona da Colômbia ou da Venezuela um ameríndio armado de arco, outro cavando (ambos nus) e dois outros vultos muito próximos, aparentemente mulheres, de bragas e munidas de enxadas, uma delas acocorada. Na parte norte do continente americano desenharam-se mais florestas com uma raposa, aves, dois veados, dois outros animais de difícil identificação (proboscídeos? tapires?), e mais um veado e três corças, bem como arvoredo, na Terra Corte Regalis (as legendas do atlas, bem como os textos, estão em latim; mas não os topónimos).
Na mesma folha está representada a costa ocidental africana a norte do golfo da Guiné; nela se desenharam árvores exóticas, diversas aves e dois antropóides que parecem talvez macacos, mas também podem ser a representação gráfica dos homens selvagens de que nos fala Duarte Pacheco Pereira, e que estão representados em monumentos do nosso país. Alguns destes motivos são retomados por outros cartógrafos, por exemplo Sebastião Lopes, numa Carta Atlântica de 1558, que representa parte dos continentes americano e africano, com aves e um ameríndio lenhador no Brasil e cavaleiros à carga no Norte de África. O lenhador que derruba a árvore é, sem dúvida, um ameríndio, e o desenho põe em causa a apregoada inadaptação dos naturais dessas terras para trabalhos agrícolas.
O corte de árvores no Brasil repete-se na fl. 12 do atlas de Diogo Homem de 1558; além disso, neste mapa o cartógrafo representou um ameríndio no acto de lançar uma flecha, e os tão falados homens gigantescos da Terra do Fogo (com uma legenda confirmativa: Repertí sút hic homines tam lõga stature ut gígantes locitur). Duas cenas chamam particularmente a atenção de quem observa esta carta: um aldeamento de índios, com as tendas dispostas sem o ordenamento que era habitual, mas com vários personagens miniaturais no espaço ocupado; e uma cena de canibalismo, desenhada com alguma fantasia; de uma árvore estão pendurados despojos de uma vítima que teria sido esquartejada, ao lado estão a ser assados no espeto outros despojos, encontrando-se um grupo de índios à volta da fogueira. Nesta çarta vêem-se ainda dois monstros marinhos míticos, tipo de ilustração que havia de fazer carreira em toda a cartografia europeia.
De notar que a cena de canibalismo se encontra, com igual poder de fantasia, na fl. 5 do atlas de Diogo Homem, de 1568, que está hoje muito deteriorada (consequências da última guerra) numa biblioteca de Dresden, mas de que existem, felizmente, boas fotografias anteriores aos danos produzidos pela água a que se recorreu para debelar um incêndio, que uma bomba fez deflagrar na biblioteca em que se encontrava». In Luís de Albuquerque, Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT