Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
«(…) Sob este aspecto, a cartografia portuguesa desse tempo está por
estudar, embora alguns ensaios inéditos dela se tenham ocupado. Na fl. 2 do
atlas Miller (de 1519)
representa-se parte do Oriente, incluindo a Arábia, as penínsulas industânica e
indochinesa. Os desenhos-representativos são em número elevado: cidades, o
túmulo de Maomé, localizado numa Meca bem no interior da Arábia, árvores de
vários tipos desconhecidos em Portugal, predominam as palmeiras, animais de habitat ou suposto habitat local camelos na Arábia, um leão na Pérsia, um rinoceronte
nas proximidades do Tibete, dois elefantes no Norte da Índia e uma ave não
identificável na área da Birmânia); para além disso, um cavaleiro correndo à
desfilada na Etiópia, e guerreiros de espada e escudo na Arábia e na Índia (distinguem-se
pelo vestuário).
Na fl. 4 do mesmo atlas, com a representação do Brasil, abundam as aves
de plumagens de cores variadas (que tanto agradaram aos europeus); mas o cartógrafo
também desenhou um símio, uma onça e um mítico glifo; a par disso,
árvores-do-brasil, algumas já decepadas e cujos índios nus racham ou carregam,
e ainda mais indios de saiotes e perucas de penas, esboçados com um realismo
que pode ainda hoje ser comprovado. Noutra folha desse precioso conjunto de
cartas vêem-se na zona da Colômbia ou da Venezuela um ameríndio armado de arco,
outro cavando (ambos nus) e dois outros vultos muito próximos, aparentemente mulheres,
de bragas e munidas de enxadas, uma delas acocorada. Na parte norte do
continente americano desenharam-se mais florestas com uma raposa, aves, dois
veados, dois outros animais de difícil identificação (proboscídeos? tapires?), e mais um veado e três corças, bem
como arvoredo, na Terra Corte Regalis
(as legendas do atlas, bem como os textos, estão em latim; mas não os topónimos).
Na mesma folha está representada a costa ocidental africana a norte do
golfo da Guiné; nela se desenharam árvores exóticas, diversas aves e dois
antropóides que parecem talvez macacos, mas também podem ser a representação
gráfica dos homens selvagens de que nos fala Duarte Pacheco Pereira, e que
estão representados em monumentos do nosso país. Alguns destes motivos são
retomados por outros cartógrafos, por exemplo Sebastião Lopes, numa Carta
Atlântica de 1558, que representa
parte dos continentes americano e africano, com aves e um ameríndio lenhador no
Brasil e cavaleiros à carga no Norte de África. O lenhador que derruba a árvore
é, sem dúvida, um ameríndio, e o desenho põe em causa a apregoada inadaptação
dos naturais dessas terras para trabalhos agrícolas.
O corte de árvores no Brasil repete-se na fl. 12 do atlas de Diogo Homem de 1558; além disso, neste mapa o
cartógrafo representou um ameríndio no acto de lançar uma flecha, e os tão
falados homens gigantescos da Terra do Fogo (com uma legenda confirmativa: Repertí sút hic homines tam lõga stature ut
gígantes locitur). Duas cenas chamam particularmente a atenção de quem observa
esta carta: um aldeamento de índios, com as tendas dispostas sem o
ordenamento que era habitual, mas com vários personagens miniaturais no espaço ocupado;
e uma cena de canibalismo, desenhada com alguma fantasia; de uma árvore
estão pendurados despojos de uma vítima que teria sido esquartejada, ao lado
estão a ser assados no espeto outros despojos, encontrando-se um grupo de
índios à volta da fogueira. Nesta çarta vêem-se ainda dois monstros marinhos
míticos, tipo de ilustração que havia de fazer carreira em toda a cartografia
europeia.
De notar que a cena de canibalismo se encontra, com igual poder de
fantasia, na fl. 5 do atlas de Diogo
Homem, de 1568, que está hoje muito deteriorada
(consequências da última guerra) numa biblioteca de Dresden, mas de que
existem, felizmente, boas fotografias anteriores aos danos produzidos pela água
a que se recorreu para debelar um incêndio, que uma bomba fez deflagrar na
biblioteca em que se encontrava». In Luís de Albuquerque, Breves considerações
sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na
época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991,
ISBN 972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT