terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Cidade Antiga. Estudo sobre o Culto, o Direito da Grécia e de Roma. «Por mais antigas que sejam estas crenças, delas nos ficaram testemunhos autênticos. Esses testemunhos estão nos ritos fúnebres, sobreviventes em muito às crenças primitivas, e, porque certamente nascidos com estas, podem portanto melhor fazer-no-las compreender»

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Crenças sobre a alma e sobre a morte
«Até aos últimos tempos da história da Grécia e da de Roma, vemos persistir entre o homem do povo determinado conjunto de pensamentos e de usos, por certo datando de época muito afastada, mas onde já poderemos reconhecer as ideias primitivas concebidas pelo homem quanto à sua própria natureza, a sua alma, sobre o mistério da morte.
Por muito que remontemos na história da raça indo-europeia, de que as populações gregas e italianas descendem, notamos não ter esta raça acreditado que tudo com a morte se acabasse para o homem, depois desta curta vida. As mais antigas gerações, muito antes ainda de existirem filósofos, criam já em uma segunda existência passada para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte, não como decomposição do ser, mas como simples mudança de vida.
Porém, em que lugar e de que maneira se viveria esta segunda existência? Acreditava-se que o espírito imortal, uma vez evadido do corpo, ia dar vida a um outro corpo? Não; porque a crença na metempsicose nunca conseguiu botar raízes nos espíritos das populações greco-italianas; não era essa também a crença seguida entre os antigos árias do Oriente, por os hinos dos vedas se lhe oporem. Cria-se em que o espírito subisse ao céu, para a região da luz? Também não, porque o pensamento de que as almas entravam em morada celeste é de época relativamente moderna no Ocidente; a habitação celeste apenas se considerava recompensa dada a alguns grandes homens e aos benfeitores da humanidade.
De harmonia com as mais antigas crenças dos italianos e dos gregos, não era em um outro mundo que a alma ia passar essa sua segunda existência; ficava perto dos homens, continuando a viver na terra, junto deles.

NOTA: ‘Sub terra consevant reliquam vitam agi mortuorum’, Cícero. Esta crença estava tão arreigada, acrescenta Cícero, que, mesmo quando se estabeleceu o uso de queimar os corpos, ainda então se continuou a crer em que os mortos mantivessem a vida debaixo da terra.

Acreditou-se mesmo, durante muito tempo, que nesta segunda existência a alma continuava associada ao corpo. Nascida com o corpo, a morte não os separava; alma e corpo encerravam-se juntamente no mesmo túmulo.

Cortesia de stgemma

Por mais antigas que sejam estas crenças, delas nos ficaram testemunhos autênticos. Esses testemunhos estão nos ritos fúnebres, sobreviventes em muito às crenças primitivas, e, porque certamente nascidos com estas, podem portanto melhor fazer-no-las compreender.
Os ritos fúnebres mostram-nos claramente como, quando se metia um corpo no túmulo, se acreditava em que, ao mesmo tempo, se metia lá alguma coisa com vida. Virgílio, descrevendo sempre com tanta precisão e escrúpulo as cerimónias religiosas, termina a sua narrativa dos funerais de Polidoro por estas palavras:
  • ‘Encerrámos a alma no túmulo’.
Igual expressão se encontra em Ovídio e em Plínio, o Moço; não queremos dizer tenha isto correspondido propriamente às ideias formadas por estes escritores sobre a alma, mas somente afirmar que, desde tempo imemorial, isto mesmo se perpetuara na linguagem, atestando deste modo crenças antigas e correntes.

NOTA: Virgílio: Animamque sepulcro condimus. Ovídio, Tumulo fraternas condidit umbras. Plínio: Manes rite conditi. A descrição de Virgílio refere-se ao uso dos cenotáfios; admitia-se que, quando se não pudesse encontrar o corpo de um parente, se fizesse certa cerimónia reproduzindo exactamente todos os ritos da sepultura e acreditava-se que se encerrava a alma no túmulo à falta do corpo.

No final da cerimónia fúnebre havia o costume de chamar por três vezes a alma do morto, e justamente pelo nome que este havia usado em vida. Faziam-se-lhe votos de vida feliz debaixo da terra. Dizia-se-lhe por três vezes: Passa bem. E acrescentava-se: "Que a terra te seja leve".
A tal ponto se acreditava em que o mesmo ser ia continuar a viver debaixo dessa terra e lá conservando o usual sentimento de bem-estar e de sofrimento! Escrevia-se sobre o túmulo a afirmar que homem ali repousava: costume que sobreviveu a estas crenças e que, transmitindo-se de século em século, chegou até os nossos dias. Empregamo-lo ainda, embora já hoje ninguém acredite que um ser imortal repouse no túmulo.

Mas na antiguidade supunha-se tão firmemente que o homem ali vivia sepultado que nunca se deixava de, juntamente com o homem, se enterrar os objectos de que se julgava viesse a ter necessidade, vestidos, vasos, armas. Derramava-se vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a sede; deixavam-se-lhe alimentos para o apaziguar na fome. Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que estes seres, encerrados com o morto, o serviriam no túmulo, como o haviam feito durante a sua vida. Depois da tomada de Tróia, os gregos regressaram ao seu pais, cada um deles conduzindo a sua bela cativa, e tendo Aquiles, morando já debaixo da terra, reclamando também a sua, deram-lhe Polixena.

Cortesia de mosaicosdosul

Um verso de Píndaro guardou-nos certo curioso testemunho destes pensamentos das gerações antigas. Frixos fora obrigado a deixar a Grécia e fugira para a Cólquida. Morreu neste país: mas embora morto queria regressar à Grécia. Apareceu então a Pélias e ordena-lhe que vá à Cólquida para de ali trazer a sua alma à Grécia. A sua alma sentia sem dúvida a saudade do solo pátrio, do túmulo da família; mas, vivendo ligada aos seus restos corporais, evidentemente que não poderia abandonar a Cólquida sem os trazer consigo.
Desta crença primitiva derivou para o homem a necessidade de uma sepultura. Para a alma se fixar na morada subterrânea destinada a esta segunda vida, impõe-se igualmente que o corpo, ao qual a alma está ligada, se cubra de terra. A alma que não tivesse o seu túmulo, não tinha morada. Era errante. Em vão aspiraria ao repouso que amava, depois das agitações e dos trabalhos desta vida; ficava condenada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem jamais parar, sem nunca receber as oferendas e os alimentos de que tanto carecia. Desgraçada, cedo essa alma se tornaria malfazeja. Atormentaria então os vivos, enviando-lhes doenças, devastando-lhes as searas, atormentando-os com aparições lúgubres, para deste modo os advertir de que tanto o seu corpo como ela própria queriam sepultura». In A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1981.

Cortesia de LC Editora/JDACT