Cortesia de laislaliteraria
Encontro com um fidalgo português
«Estava frio em Madrid naquele dia 20 de Março de 1622. De pouco servira que a Primavera, prestes a começar, tivesse proporcionado uma manhã bonita e cheia de sol. Ao entardecer, o Inverno quis fazer uma última graça com um vento fraco mas cortante que feria o rosto e se insinuava por entre as pregas da capa, «ar de Madrid, que mata a velha e não apaga a candeia», murmurou Luis Vélez de Guevara, enrolando-se mais na capa e alargando a passada. Deixou para trás a rua das Huertas e, atravessando o adro da igreja de São Sebastião, enfiou pela rua de Atocha. Não estava de bom humor. De facto, queria abandonar as imediações da casa de Sánchez de Vargas o mais depressa possível. Estava convencido de que a distância o faria esquecer as más notícias que ali havia recebido.
A notícia de que as suas peças já não suscitavam interesse no meio teatral da rua del León não o surpreendera demasiado. De há muito que as arcas lá de casa, quase vazias, vinham a pô-lo de sobreaviso. A sua dedicação de homem de leis, ao serviço do conde de Saldaña, não lhe proporcionava rendimentos que se vissem e, para complicar a situação, tinha muitas bocas a alimentar. Portanto, não perdia nada se insistisse com o Vargas para que levasse um novo drama à cena no teatro do Príncipe ou no de La Cruz.
Sonhara, desde que se conhecia, em ganhar a vida com a escrita. Não fora em vão que estudara Artes e Filosofia em Osuna, mas o tempo passado em Itália, onde servira na milícia do conde de Fuentes, tinha-o afastado da sua primeira vocação. Assim, em 1603, já instalado em Madrid, tinha conseguido um grande êxito com “La serrana de la Vera” Isso, porém, acontecera dezanove anos antes e, mesmo que ainda fosse considerado um autor de renome, não voltara a saborear qualquer triunfo digno de registo.
Cortesia de leituragulbenkian
Ao chegar à rua de Atocha pensou em dirigir-se ao hospital de Montserrat, situado junto da praceta de Antón Martín, onde convalescia um antigo companheiro de armas. Pensou melhor. Não estava com disposição para reconfortar doentes. Então, decidiu seguir na direcção oposta e encaminhou-se para a taberna do Alonso. Ali encontraria certamente algum colega que lhe pudesse emprestar uns ducados ou, na pior das hipóteses, lhe pagasse um bom vinho de Consuegra, capaz de lhe embotar suficientemente os sentidos e de calar os protestos do seu estômago vazio.
Anoitecera e dali a pouco a Hermandade del Refugio começaria a sua «ronda do pão e ovos». Aquele trabalho de beneficência atraía os mais necessitados para a praça Mayor. Por essa altura, a escuridão já seria total, só atenuada pelo resplendor dos círios que iluminavam as imagens das fachadas.
Nem assim as ruas ficariam desertas. Na noite madrilena havia sempre um ou outro cavaleiro bem embuçado, que tentava não ser reconhecido ao dirigir-se para a casa de jogo da rua dos Milaneses ou ao encontro das muitas meretrizes que a essas horas andavam pelas imediações de San Felipe.
É evidente que isso só se verificaria dali a umas horas. Por essa altura, já VéIez teria recolhido a sua casa da rua das Urosas. Por agora , entretinha-se a observar as idas e vindas de religiosos e artesãos ou de um ou outro cavaleiro que regressava do habitual passeio vespertino pelo Prado de San Jerónimo.
Não com o sustento da família forçavam-no a continuar ao serviço do conde de Saldaña. Uma obrigação que lhe ocupava quase por completo o tempo e a cabeça, relegando o trabalho da escrita para um plano secundário. Por isso, não era de surpreender que, em condições tão precárias, a sua produção teatral carecesse de força suficiente para levar a ‘cazuela’ dos teatros do Príncipe ou de La Cruz a vibrar como sucedia, por exemplo, com as obras de Lope. Ah, Lope! O magnífico Félix Lope de Vega y Carpio, o autor mais prolífico e admirado da corte. Vélez tinha orgulho em poder dizer-se amigo daquele homem cujo talento tanto admirava mas, naquela altura, ao recordar-se dos êxitos dele, não conseguiu evitar uma pontinha de inveja.
Cortesia de mujeresdeleyenda
Foi nesse preciso momento, quando ia a passar defronte da rua dos Relatores, que viu a figura inconfundível do mestre a subir a ladeira íngreme.
- Que bela surpresa, amigo Lope! De onde vindes, o que fazeis por estes meus lados?
- Do Convento de La Merced que fica aqui perto. Fui despedir-me de um bom amigo, comediógrafo e monge da ordem, a quem os superiores, alarmados pela prosa profana que lhe anima a pena, recomendaram umas semanas de retiro num convento de Aragão, o Convento de Olivar.
- Sem dúvida vos referis a frei Gabriel Téllez. - Exacto, meu bom amigo, a ele mesmo. Ou melhor, a Tirso de Molina, como ele gosta de assinar as obras, por respeito ao hábito que veste. - Meu amigo, os tempos não correm de feição para farsas e farsantes. - Não o direis por vós nem por mim. As nossas obras são representadas e, felizmente, com êxito. - O êxito é algo que conheceis melhor do que eu, meu bom Lope. Era precisamente nisso que vinha a pensar quando vos encontrei. Gozais do favor do público e não há dúvida de que Madrid vos adora. - Sim, graças a Deus... Ora vede.
Lope sorriu ao apontar uma rapariga que vestia uns andrajos a servirem de saias e corria, ofegante, a beijar-lhe a mão. Recebeu-a com cortesia e, ao dar-lhe a bênção, lançou-lhe um olhar que contradizia o gesto paternal da mão». In Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial Presença, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-23-3081-7.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT