Cortesia de fcg
«Os amores de D. Inês de Castro e do infante Pedro de Portugal constituem um acontecimento efectivo da história portuguesa de meados do século XIV. Apesar de sobejamente conhecido, recordaremos de modo breve o seu desenlace trágico: por motivos dinásticos e políticos, o rei Afonso IV persuadido por três ministros conselheiros, durante uma ausência de Pedro, ordena a morte da amante deste, Inês de Castro, que será degolada em Coimbra no dia 7 de Janeiro de 1355. Assim que sobe ao trono, em 1357, o ex-infante leva a cabo um programa de vingança e de apoteose da amada morta. Começa por matar os ministros conselheiros e declara ter casado sete anos antes com Inês, para que esta seja reconhecida como rainha; em seguida, manda construir um monumento fúnebre mais digno no Mosteiro de Alcobaça e, concluído este, em 1362, exuma o cadáver de Inês, enterrado até então em Coimbra, e com grande aparato fá-lo trasladar para Alcobaça, onde será colocado no sarcófago sobre o qual repousa uma estátua jacente com a coroa real na cabeça.
Ao longo dos séculos, a estes factos históricos, transmitidos pelos cronistas e documentados pelo túmulo de Alcobaça, vieram adicionar-se muitos elementos lendários, alguns dos quais formados por transmissão oral e retomados em vários textos literários, outros forjados por autores que escreveram sobre Inês e depois integrados no património da tradição oral.
Assim, é adicionado, por exemplo, o episódio macabro da coroação do cadáver e do beija-mão por parte dos súbditos, ou o do casamento póstumo, muito desenvolvidos em várias obras tardias; bem como o episódio do encontro do rei Afonso com Inês rodeada pelos seus filhos; ou o dos filhos assassinados juntamente com a mãe; ou também a lenda da Quinta das Lágrimas e da Fonte dos Amores, muito viva ainda hoje em Coimbra, e muitos outros elementos.
Cortesia de costapinheiro
Entre todos os acrescentos lendários, o que mais nos interessa neste contexto é o episódio, muito curioso e bastante esquecido pela crítica especializada, do fantasma de D. Inês que, pouco depois de morta, aparece ao infante D. Pedro para lhe falar ou dialogar com ele. Tal motivo não se afasta de uma tendência mais geral no sentido da ressurreição de Inês, que teve grande sucesso em obras dos séculos XIX e XX, mas presente já, sob distintas formas, em vários textos inesianos do “Siglo de Oro”:
- de facto, em muitas das obras antigas sobre Inês, ela recebe uma nova vida depois de morta, e continua a actuar em cena como se estivesse viva.
É o que se passa, para começar, com a reanimação do cadáver de Inês, presente em todas as obras que tratam o tema da coroação póstuma: em todas elas, é o rei Pedro I quem desenterra o cadáver da sepultura, ou que, pouco antes de o enterrar, o coloca num trono para em seguida lhe prestar as mais solenes honras póstumas, quer coroando a sua cabeça (ou caveira), quer obrigando os súbditos a beijar-lhe as mãos (ou os ossos), quer casando com os restos mortais de D. Inês para legitimar os seus filhos.
É o que vemos em várias obras inesianas, tanto poéticas como teatrais, desde meados do século XVI até um período muito avançado do século XVII, ou seja, no segundo e terceiro romances de Isabel de Liar (de 1550 e 1572), na “Nise Laureada”, de Bermúdez (de 1577), no segundo romance de Gabriel Lobo de la Vega (de 1587), na “Tragedia”, de Mejía de la Cerda (de 1612), em “Reinar depués de morir”, de Vélez de Guevara (c. 1612), e em dois romances tardios sobre o mesmo tema (de 1688 e do século XVIII).
Noutras obras de origem portuguesa, em contrapartida, Pedro I presta homenagem, jâ não ao cadáver, mas à imagem de Inês representada numa estátua que ele próprio manda construir: é o que sucede num romance inesiano do século XV, “Gritanda va el caballero”, anterior a 1495 e num texto poético de 1606, “La Iffanta Coronada” de João Soares de Alarcão.
Cortesia de strangehistory
Todos estes textos fazem com que, já morta, Inês de Castro reviva de maneira «forçada» uma nova vida, na medida em que reanimando a todo o custo a sua imagem, ou mais frequentemente o seu cadáver, prolongam de facto a permanência em cena da personagem, obrigando-a a continuar a actuar, embora apenas como presença passiva e muda. Esta sobrevivência artificial de algumas horas mais para além da morte é determinada por Pedro I, para que Inês receba, depois de morta, o que não pôde receber em vida. E esta deslocação temporal, estas horas de vida fictícia que lhe são concedidas são, muitas vezes, assinaladas pelos autores mais antigos mediante sintagmas que chegam a parecer formulares, «reinar ‘depois’ de morrer», «que ‘despois’ de ser morta foi rainha», etc..
Outra modalidade da nova vida oferecida a Inês é a que lhe atribuem os autores de vários monólogos líricos do século XVI em que, já morra e falando do Mundo do Além (ou de um mais codificado ‘Infierno de los enamorados’), ela própria nos conta a primeira parte da sua história, isto é, o que sucedeu até à hora em que foi degolada. Testemunho desta segunda tendência são três textos da primeira metade do século XVI:
- as “Trovas” de Garcia de Resende, de 1516, o primeiro romance de Isabel de Liar, “Yo me estando en Giromena”, publicado no “Cancionero de Romances sin año”, e o romance recentemente dado a conhecer por Eugenio Asensio, “Yo me estaba allá en Coimbra” e copiado num manuscrito de meados do século XVI (c. 154-1570)».
In Patrizia Botta, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.
Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT