segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Um génio da Língua e da Literatura: Gaspar Pires Rebelo. Nuno Júdice. «O fascínio por Itália também é uma constante deste Autor, e em particular por Veneza e Florença. o que me parece interessante, contudo, é o facto de o modelo político italiano permitir a defesa de um sistema de ascensão à nobreza, e mesmo ao poder, por parte de fidalgos pobres, ou simples aventureiros»

Cortesia de livrarialeitura

«A vida nas galés, nas prisões, os naufrágios, pormenores dramáticos como esse de os prisioneiros dos corsários serem objecto de uma selecção de nacionalidade entre os que podem ser objecto de resgate, e serão poupados, e os que nada valem, e são mortos, a vida de comerciantes estrangeiros em Lisboa, o universo familiar (incestos, adultérios, lutas entre irmãos, etc.), constituem um quadro único da sociedade portuguesa e europeia do século XVII, dado que o romance se situa em Portugal, Espanha, França, Itália, Grã-Bretanha, alargando-se também a outros continentes, com um quadro único da vida dos escravos cristãos no Norte de África e na Turquia, com uma imagem por vezes positiva da tolerância dos Mouros em relação aos cativos, tal como também se encontra um interessante, episódio passado no extremo do Império, na Índia governada pelos Portugueses.

É vastíssimo o universo de referências culturais de Rebelo. Um dos aspectos mais interessantes é verificar que, para além dos clássicos latinos, e de Virgílio, em particular, que é a grande referência, seguida por Ovídio, para o fundo mitológico da obra, são também referidos, de entre os seus próximos, “Os Lusíadas” e o “Amadis”.
Cortesia de oceansbridge



No entanto, através de possíveis fontes para as situações narrativas, é imenso o fundo a que Rebelo recorre. Claro que temos o mundo picaresco peninsular, em que Cervantes não deixa de ser um modelo; mas é também no universo da tradição oral e da literatura de cordel que outro motivo de inspiração se pode procurar, e se, para o caso do ‘travesti’, se pode referir o arquétipo da Donzela guerreira, extensamente desenvolvido no Romanceiro e no conto popular, talvez não seja preciso ir tão longe: bem perto dele, há o caso da ‘Monja alferes’, que circulou por toda a Península, a partir de 1625, e em 1626 foi adaptada para teatro pelo discípulo de Lope de Vega, Juan Pêrez de Montalván, lembrando a história de Brites de Almeida, a ‘padeira de Aljubarrota’ que, em folheto de cordel do séc. XVIII (pelo que a lenda já devia circular desde muito antes) é apresentada como tendo sido, ainda jovem, raptada por corsários mouros, tendo sobrevivido graças ao disfarce masculino. Há também uma curiosíssima adaptação do topos medieval do ‘coeur mangé’, no episódio em que o marido enganado dá a comer à mulher adúltera o coração do amante, levando-a ao suicídio no instante em que lhe revela a natureza do prato que ela acaba de saborear.

Cortesia de invernoemlisboa

Mantém-se, é certo, a defesa da castidade dos dois heróis como o grande ‘Leitmotiv’ dos episódios; mas isso não impede que, postos à prova, por várias vezes surjam situações limite em que só uma intervenção exterior salva Florinda ou Arnaldo de transgredirem a recíproca promessa de fidelidade até ao casamento. Trata-se de uma característica decorrente da ficção ibérica deste século XVII, cujo modelo é a novela helenística, em que o amor desviado ou luxurioso (característico de tantos dos personagens da «Constante Florinda» serve de contraponto à virtude dos amantes fiéis, realçando-a ao nível do heroísmo.

O fascínio por Itália também é uma constante deste Autor, e em particular por Veneza e Florença. o que me parece interessante, contudo, é o facto de o modelo político italiano permitir a defesa de um sistema de ascensão à nobreza, e mesmo ao poder, por parte de fidalgos pobres, ou simples aventureiros. Claro que, para isso, é necessário passar todas as provas a que Florinda e Arnaldo são submetidos; mas a sua entronização no Ducado de Florença (para mais sendo, como são, estrangeiros, naturais de Saragoça) não deixa de constituir uma visão muito heterodoxa da sucessão dinástica, o que não deixa de ser significativo no período em que os volumes são publicados (1625 e 1633), nos últimos quinze anos da regência castelhana da Coroa portuguesa, sob Filipe III de Portugal, em que são notórias as dificuldades e o espírito de resistência que terá o seu clímax em 1637-8 com as alterações de Évora, nesse Alentejo onde Pires Rebelo exerce o oficio de prior, em Castro Verde: e não é sem dúvida casual a referência à falta de papel que, segundo ele, afectou a publicação da 2ª parte, contrariando a ânsia dos leitores em conhecer a continuação da história, tal como o modo laudatório como Portugal é referido (omitindo referências a Castela), colocando Rebelo do lado dos que mantêm a vontade separatista, que se consumará em 1640». In Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, Nuno Júdice, Teorema, Lisboa, 2005, Fundação C. Gulbenkian, HALP, 2005.

Continua
Cortesia de FCGulbenkian/JDACT