Cortesia de domquixote
«Na abertura dos anos 60 do século XX publicaram-se duas obras, tão diferentes e por isso mesmo complementares:
- a grandiosa visão de “Os Descobrimentos Portugueses” de Jaime Cortesão (Lisboa, Editora Arcádia, 2 vols., 1958-1962), com a ousadia de interpretações arriscadas, o pano de fundo da geografia de mares e terras, a atenção às personagens e às circunstâncias sociais-culturais;
- em contraste, a colectânea (póstuma) de esparsos de Duarte Leite, “História dos Descobrimentos” (Lisboa, Edições Cosmos, 2 vols., 1959-1962), também inserindo a acção dos navegadores na realidade física, de precisão analítica, rigorosa na prova, e cujos exames das fontes antecedem a noção operatória de utensilagem mental, de Lucien Febvre.
Os mapas portugueses de finais de Quatrocentos, do século XVI e primeiro Seiscentismo apareciam reunidos por Armando Cortesão e A. Teixeira da Mota nos 6 vols. dos “Portugaliae Monumenta Cartographica” (Coimbra, 1960). Com “L'Économie de L’Empire Portugais XVe-XVIe siècles (1958, publicado em 1969) introduzíamos a sistemática consideração do económico na expansão; completado por outra abordagem, “A Economia dos Descobrimentos Henriquinos”.
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Momento de balanço e de rasgar de novos horizontes, com inovação na problemática e na metodologia, pondo em causa todas as ciências humanas. Para medirmos as mudanças, olhemos um pouco para trás.
A História dos descobrimentos e da expansão crescera ao serviço de reivindicações nacionais e na obsessão das prioridades no descobrir e ocupar. O Visconde de Santarém destruíra as fabulosas viagens dos marinheiros de Dieppe às costas africanas no século XIV, com que a França pretendia legitimar os seus propósitos sobre a Guiné; os Franceses tiveram a coragem de acatar a demonstração. Mas a sua historiografia (e a de outros, curiosamente) continuou a repetir a inventada lenda, ainda passado o meio do século XX um enorme cartaz no Musée de L'Homme, em Paris, a apregoava, Buron e até Marc Bloch referiram-na a sério, embora La Roncière, e Raymond Mauny tivessem confirmado o historiador português. O imperialismo da historiografia italiana excede provavelmente todos os outros. Crinó, a propósito de Colombo, escreveu:
- «Dopo la scoperta del Nuovo Mondo, tutte le Nazione europee bagnate del'Atlantico si lanciarono una dopo l'altra, con spedizioni maritime verso lidi fino allora ignoti, la Spagna, oltre che con Cristoforo Colombo, con Amerigo Vespucci, I'Inghilterra con Giovanni e Sebastiano Caboto, la Francia con Giovanni da Verrazano; in queste corse maririme è sempre il genio italiano il gran faro delle vie del mondo».
Rinaldo Caddeo não lhe ficou atrás: a Itália revelou o Oriente graças a Marco Polo, Nicolò di Conti e Ludovico Varthema, os Vivaldi iniciaram a busca de nova rota para as Índias Orientais pelo mar do Poente, genoveses descobriram as Canárias ao findar o século XIII e a Madeira e Açores no XIV, as ilhas de Cabo Verde e a costa da Guiné foram descobertas por Cà da Mosto e Da Noli; o genovês Colombo adoptou o plano do florentino Toscanelli; e quem, senão Vespucci, viu pela primeira vez o Rio da Prata, e pela primeira vez sustentou a continentalidade das Américas?
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Claro, para os historiadores alemães toda a náutica astronómica deriva dos trabalhos de Regiomontanus e da escola de Nuremberg, para quê atender aos estudos de Bensaúde, Luciano Pereira da Silva, Fontoura da Costa? Na sua preciosa edição da ‘Ymago Mundi’, Buron supõe, dada a ausência de qualquer referência explícita, que Colombo se teria servido das tábuas de Regimontanus. Prestígio de um mito: na verdade, numa nota marginal à Suma de d'Ailly, o genovês cita as tábuas alfonsinas.
Mas Portugal não ficou incólume ao vezo nacionalista. Periodicamente surgem, e ainda hoje, os livros a demonstrar que Colombo era português. Os Portugueses não se teriam limitado a concluir o périplo africano, a penetrar no Extremo Oriente, a encontrar a Austrália, pois teriam ainda descoberto o continente americano de norte ao extremo sul. Em Portugal se teria criado a náutica astronómica, ambiciosamente baptizada de ciência náutica, quase sem aurir noutras contribuições, aqui se teria formado o pensamento moderno, com base na observação e experiência, aflorado a ideia de dúvida metódica, e até a concepção da gravitação universal.
Os descobrimentos teriam renovado a literatura europeia, seriam o grande factor da génese do capitalismo, teriam salvo a Europa da mortal ameaça otomana, além de terem obrigado o Islão a refluir e de tornarem ecuménica a Cristandade. Se os preconceitos chauvinistas, o recíproco desconhecimento de investigações, bibliografia, fontes, entre as historiografias nacionais, embaraçavam seriamente os progressos da história dos descobrimentos, conquistas e colonizações, outros obstáculos se erguiam no seu caminho. Em relação a Portugal, apontemos a escassez de fontes, que a total destruição das Casas da Mina e da Índia e o incêndio da Alfândega de Lisboa tornaram dramática. Perderam-se, além dos fundos da administração ultramarina de Quatrocentos e Quinhentos, crónicas como a de Afonso de Cerveira, jornais de bordo e mapas dos primórdios da expansão, faltavam registos de contabilidade e movimento comercial, correspondência de mercadores (que só em parte vinha suprir a de praças estrangeiras, caso das cartas dos Ruiz de Valladolid). Dificuldades de acesso aos arquivos, desarrumação dos fundos, ausência de catálogos e índices». In Vitorino Magalhães Godinho, A Expansão Quatrocentista Portuguesa, 1962, Publicações Dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-20-3510-1.
Cortesia de Dom Quixote/JDACT