Cortesia de quetzal
«A verdade é que a formação da atitude científica no domínio dos problemas humanos encalhava em escolhos que não seriam de prever. Durante séculos procurou-se explicar a natureza e o mundo através de relações sociais. De certa maneira, a física aristotélica, como toda a ciência antiga e medieval, é uma projecção do social na natureza; não era só a religião que se concebia antropomorficamente, mas toda a concepção do universo, com a ideia de Criador e a metáfora do Relojoeiro que faz andar esse universo. A ruptura dá-se com a matemática e a mecânica de Descartes e Galileu: ao mundo do pensamento opõe-se radicalmente o mundo da extensão, do espaço, se preferirem.
A ciência estabelece leis que são relações necessárias, de carácter matemático, entre dados acessíveis à experimentação. Esta concepção é que permitiu a Montesquieu, por seu turno, conceber a lei na esfera humana como uma relação que não releva da ordem jurídica.
Se a ciência do universo se tornou possível por tal desantropomorfização da realidade exterior, no que à ordem humana concerne há dois caminhos sem saída. No século XIX tentou-se aplicar aos problemas humanos os métodos e a maneira de pôr as questões que se costumavam aplicar nas ciências da natureza, em particular na biologia. Tal aplicação revestiu diferentes formas. Apontaremos aqui apenas a que conquistou maior voga, o organicismo, por exemplo de Herbert Spencer.
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Formulação precipitada: dadas as características da biologia e o pouco que se sabia da vida mental e social, a transição ou transposição não resultava em aquisições válidas, a problematização por esse caminho e a metodologia adoptada só davam ilusórias explicações. A situação mudará radicalmente, graças aos fulgurantes progressos quer da biologia quer da neurologia humana. O conhecimento cada vez mais fino e preciso do cérebro permite ligar certas funções mentais a zonas demarcadas do cérebro, compreender a transmissão através das sinapses dos neurónios (e os mecanismos químicos que a realizam).
Assim acontece com a memória, com as diferentes memórias, ou com as afecções (unidades afectivas) e emoções, e ressalta o seu papel na formação da personalidade. Ultrapassa-se a distinção entre pensamento e extensão, e temos a unidade biomental.
Para finais do Oitocentismo, por influência do neokantismo, por um lado, e pelas novas orientações da matemática e da física por outro, resvala-se para a posição oposta. Wilhelm Dilthey distingue e contrapõe radicalmente as ciências da cultura, que lidam com valores, e as ciências da natureza, corpo de relações puramente causais.
Se há entre o mundo do pensamento e o mundo da extensão, entre o mundo da cultura e o mundo da natureza uma oposição radical, como abordar cientificamente os problemas do mundo da cultura? Dilthey introduziu um conceito metodológico relativamente novo: a compreensão. O que caracteriza a conduta humana é ser sempre uma acção que visa determinados fins, entre os quais se traçam opções; quer dizer, estabelecemos uma hierarquia entre as metas que procuramos alcançar, há uma subordinação de uns fins a outros fins, há uma escolha, portanto, um juízo de valor a orientar sempre a nossa conduta.
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Repare-se que a economia política de então está preocupada com esses factores subjectivos, atende às atitudes de opção e escolha no funcionamento do mercado. Se queremos analisar as condutas dos homens temos de nos colocar no ponto de vista dos valores que as norteiam, e para isso é necessário compreendermos, procurarmos apreender na sua totalidade viva em relação às suas significações, tal como lhes atribui o agente da acção. Se assistimos à realização de uma manifestação colectiva, por exemplo uma festa de uma comunidade aldeã, só chegaremos a compreendê-la na medida em que nós, observadores, conseguirmos sair de nós próprios e nos instalarmos no ponto de vista daqueles que nela participam; temos pois de a viver, e viver por dentro totalmente, na comunhão com os outros participantes. Em suma, o método fundamental das ciências humanas seria a compreensão, uma compreensão que é apreensão das totalidades concretas ligadas às significações que lhes estão aferentes. Esta posição teve o mérito de levar a um dos métodos fundamentais das ciências humanas: a observação participante.
Na esteira de Dilthey, um outro pensador alemão, Max Weber, procurou completar a metodologia das ciências humanas alargando a compreensão até à explicação causal. Trata-se na verdade de um novo ponto de vista, ligando os dois domínios que tinham sido radicalmente separados. Para Max Weber, a compreensão não é já apenas a apreensão vivida de uma totalidade concreta no conjunto, na riqueza das suas significações». In Vitorino Magalhães Godinho, Problematizar a Sociedade, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-946-6.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT