Cortesia da foriente
«Adozindo era oriundo do Largo de Camões, portanto, um genuíno mamão (nome atribuído pela gíria macaense a todo o filho do bairro de S. António). Assim também eram os pais e o resto da parentela mais chegada. Vivia num casarão amarelo de rasgada varanda, que se debruçava para o largo, gozando a sombra de enormes acácias rubras. No Verão, entravam, logo de manhã cedinho, à mistura com o crucitar do galo sultão, a cega-rega das cigarras e o gorgeio da passarada do jardim do Poeta. No Inverno, a casa gemia com a humidade e com a tristeza duma praceta vazia e cinzenta, onde à noite campeavam os vendilhões ambulantes, com os seus pregões nostálgicos.
Era filho único, numa casa repleta de mulheres, a mãe, a avó e as tias maternas, uma solteira e outra viúva, uma prima, filha desta, e três criadas. Por isso, se dizia que o pai, antigo funcionário das Alfândegas Chinesas e, agora, dono duma agência comercial, se encerrava no seu gabinete a ler, quando estava em casa, esgotado do palreio feminino que matraqueava, desde o romper da alva até à noite, depois do terço da família.
Desde pequenino, ouvira contar que era bonito. E era-o, de verdade. Na infância, as suas lindas bochechas convidavam a beliscões, uma criança branquinha, os olhos esverdeados, talvez da bisavó holandesa, os cabelos acastanhados e estampa dum avô minhoto.
Devia ter nascido menina, afirmavam. No entanto, provou não ser efeminado, a despeito do rosto. Pelo contrário, cedo se mostrou viril, em zaragatas, aos coices e punhadas, com garotelhos mais avantajados que tentavam abusar da sua compleição de nina-rapariga, já no Largo de Camões, já na escola.
Cresceu, portanto, entre mulheres que o idolatravam. Era muito asseadinho e muito escrupuloso na apresentação. Uma nódoa no fatinho, um traço amarrotado na camisa, tanto bastava para haver uma crise. Os sapatos tinham de luzir espelhantes, sem uma mancha de poeira. Levava um tempo desesperante para se lavar, saltando da banheira, cheiroso como uma fula do jardim.
Cortesia de foriente
Quando se penteava, utilizava duas escovas e três pentes, para isto e para aquilo, numa operação ritual que só ele percebia e cumpria à risca. Nada o demovia a encurtar o tempo, não tinha pressa nenhuma. Orgulhava-se do sedoso dos seus cabelos encaracolados, em ondas, do seu nariz caucásico, do redondo dos seus malares de costela chinesa, dos lábios apolíneos e da fileira magnífica dos dentes. Afinal, orgulhava-se de todo o seu aspecto físico. Terminados os cuidados com os cabelos, a vestimenta e os sapatos, narcisando-se ao espelho, murmurava com sincera convicção: - Oh, Deus, obrigado por me fazeres tão bonito!
À medida que se desenvolvia, os dotes da natureza iam-se-lhe prodigalizando para melhor. Deixou-se de pancadarias, tão frequentes, enquanto era petiz, não por se ter transformado num menino cobarde.
Nada disso. Receava apenas que, no turbilhão duma zaragata, alguém, no afã de socos e pontapés, lhe estragasse a harmonia do rosto. Uma moça não examinaria, com tanto esmero, as particularidades da fisionomia. Ia ao ponto de asseverar que nascera com umas orelhas perfeitas e proporcionais, de ‘meigo traçado’. Que proveito podia tirar disso, nunca o explicou.
Na adolescência, vieram-lhe borbulhas nas faces. Tomou-se dum pânico incontrolável, barafustou, exaltou-se, chorou. As suas explosões desesperaram a família desolada. Nem o argumento de que era muito vulgar na juventude ter-se borbulhas, o consolou. Iam-lhe esburacar a cara, engelhá-la prematuramente, rasgar sulcos eternos na pele. Entrou em tratamento, correu médicos, submeteu-se a pomadas, a dietas e injecções, foi até Hong Kong a especialistas. Nada.
Aventou-se uma ida a Xangai, para consultar uma sumidade alemã em dermatologia, mas o espírito económico do pai Aurélio pôs um ponto final a tal delirante sugestão. Era demais!
Um ervanário da Rua da Prainha, figura insignificante, os olhinhos fuzilando atrás das lentes grossíssimas, acudiu, de repente, ao desgraçado. Examinou as borbulhas muito perto, passou os dedos suaves pela pele, fez perguntas num chinês dificílimo. Receitou um tratamento de chás amargos, cuidou da dieta e desencantou um unguento de cheiro agradável para besuntar as marcas doentes. Pouco a pouco, as borbulhas foram desaparecendo, a pele outra vez lisa e formosa.
Cortesia de google
Nos estudos, não desiludiu, embora nunca fosse um aluno prodígio. Frequentou o Externato do Seminário de S. José, sob a férrea e proficiente disciplina dos padres, apenas com uma reprovação, acabou o 5º Ano do Curso Geral, no liceu. Não havia necessidade de ir mais longe. Nem para Hong Kong, nem para Xangai, quanto mais para Portugal, tão distante. Filho único, cercado pelos pais e pelo mulherio que o idolatrava, o seu lugar era em Macau, para eternizar o nome da família. Para ele até era um alívio, pois preocupava-se tanto em ser bonito que era incapaz de consagrar o seu tempo aos livros.
A sua educação fora limitada, ao que se considerava, ao tempo, suficiente. Habituado a mimos e confortos, encarava o futuro com ligeireza, porque o futuro seria igual ao presente e ao passado. Era a segurança da ‘era patriarcal’, que havia de ser destruída, com o ataque japonês à China e, logo a seguir, pela Guerra do Pacífico. Por isso, teve a ousadia de bradar com volubilidade, ao concluir o 5º Ano: - Ah, ainda bem que não preciso de estudar mais!
Não se podia dizer que o pai fosse podre de rico, mas estava bem instalado na vida. Funcionário das Alfândegas Chinesas, recebera uma bolada choruda em dinheiro quando se aposentara. Prudente, colocara esse dinheiro e mais outros, de maneira a render confortavelmente. Além do mais, montara uma agência de navegação, representante de grandes companhias cargueiras, estabelecidas em Hong Kong, donde lhe vinham lucros certos. Como um verdadeiro mamão de S. António, cultivava a hospitalidade em sua casa e dava jantaradas de renome, da sua cozinha apurada». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT