segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Diogo do Couto. Década Quarta da Ásia: «Mas é verdade que o cronista não cita ‘muitos’ autores portugueses. Conhece muito mais italianos que portugueses, dir-se-ia. Somente, a presença, na sua Década, dos nossos que cita ou aproveita, é muito mais importante que a dos italianos que nomeia. Sem falar da de Camões, nesta “Década 4”, nunca o cronista escreve o nome do poeta…»

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Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Com que objectivo? Sob que caução? A submissão e destruição das religiões falsas. A expansão da única fé verdadeira. Camões:
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro...

Com o objectivo, diz Couto, ‘de arvorarem as reais bandeiras da milícia de Cristo, e as porem nos mais altos coruchéus da nefanda casa de Mafamede, para que, no lugar das suas torpezas e abominações, ofereçam ao altíssimo Deus muitos sacrifícios de louvor...’. É assim o espírito de cruzada.
“A Década 4” é oferecida ao rei, entrada a noite filipina, numa lembrança inevitável e dominadora da oferta “d'Os Lusíadas a D. Sebastião”, na alvorada de uma glória que abortou. O poeta declara-se ao serviço do rei:
  • ‘Para servir-vos, braço às armas feito, / Para cantar-vos, mente às Musas dada’.Com efeito, Camões habituou-se ao exercício alternado da espada e da pena: ‘Nüa mão sempre a espada e noutra a pena’.

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Para Couto, na altura (1597) em que dedica ao rei a sua “Década 4”, já passaram os tempos da milícia. O soldado prático já disse da sua prática. Agora dividem-se as tarefas: guerra, escritura. Sem embargo desta diferença, a clássica associação (espada/pena) não deixa de ocorrer, ao fim da epístola dedicatória, como se repete no final “d'Os Lusíadas” (para servir-vos/para cantar-vos). Vossa Majestade é outro Pirro; os seus vassalos são outros romanos:
  • ‘eles com a espada, e eu com a pena mostraremos ao mundo...’
Mostraremos ao mundo..., afiança Couto. E a musa de Camões,(afiança o poeta na última oitava “d'Os Lusíadas”, fico que em todo o mundo de vós cante...
Temos terminado com a epístola dedicatória. Com Camões, não. É um nunca acabar. Não. Não seja Camões a árvore que esconda a floresta. Porque se trata de uma verdadeira floresta. Já nesta “Década 4”, Diogo do Couto alardeia um número impressionante de leituras, de autores antigos e modernos, estrangeiros e portugueses, historiadores, claro, mas também viajantes, geógrafos e poetas. Entre os clássicos, Homero e Virgílio, Galeno e Ptolomeu, Arriano e Quinto Cúrcio, Plínio, César, Tito Lívio, Séneca…
Dos italianos aduz sobretudo os que conheceram o Oriente ou trataram do Oriente:
  • Marco Polo e o Sabellico, Nicolau Véneto e Andrea Cambini, geógrafos como Moleto, cosmógrafos como Enea Picolomini, historiadores como Flávio Biondo.
A sua cultura vai, ou aparenta ir, das “Antiguidades” de Flávio José ao ‘Teatro do Mundo’ de Abraão Ortélio, este último contemporâneo ainda do nosso cronista. Refere espanhóis como S. Isidoro de Sevilha, como González de Clavijo, como Gomara, historiador das Índias. Sabe de orientalistas e de orientais como Avicena, o Rásis (al Razi), o arménio Héthoum... Evidentemente não lhe escapam os estrangeiros, que escreveram de coisas portuguesas, como o Maffei.

 
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É impressionante. E ainda mais porque todos estes autores, Couto os trata com aparente à vontade e autoridade. Se faltavam em Goa as Décadas de Barros, já ao tempo do cronista a cidade se tornara certamente uma capital cultural, a julgar pelos livros que lá se encontravam, e pela rapidez com que lá chegavam. O famoso desprezo dos capitães portugueses por escrituras, cantos, letras g ciências não seria tão profundo e chocante, como nalguns passos o deixam crer Camões e Couto.

Mas é verdade que o cronista não cita ‘muitos’ autores portugueses. Conhece muito mais italianos que portugueses, dir-se-ia. Somente, a presença, na sua Década, dos nossos que cita ou aproveita, é muito mais importante que a dos italianos que nomeia. Sem falar da de Camões, que começámos a medir. Registemos só aqui, convidando à estranheza, que, nesta “Década 4”, nunca o cronista escreve o nome do poeta. Aliás não o citará pela primeira vez senão na sua “Década 7”, antes de dizer, na “Década 8”, que encontrou o autor “d'Os Lusíadas” na ilha de Moçambique, e o que ele então lhe encomendou. Há os autores que o cronista nomeia sem ter lido, e os que evidentemente leu, e não nomeia.

Dos nomeados, Barros e Castanheda são os mais utilizados. Garcia de Orta é mais utilizado que nomeado. De António Tenreiro refere-se a jornada, mas não o livro. De Gabriel Rebelo também não os manuscritos, senão uma ou outra anedota. Gaspar Correia, cujas ‘Lendas’ permaneciam manuscritas, não é nomeado, mas transparece aqui e além... Francisco de Andrade, quase perfeito contemporâneo de Couto, que decalcou com imperturbável à-vontade o dito Gaspar Correia, tinha já publicado o seu poema “O Primeiro Cerco de Diu”, mas não é nomeado nunca.
Todavia aparece uma referência, no cap. 8 do livro 6, à “Crónica de D. João III”. A de Francisco de Andrade sairia em 1613. Mas é verdade que tal Crónica fora antes confiada a António Pinheiro, bispo de Miranda e de Leiria, e a António de Castilho que, lançando mãos à obra, teria chegado ‘ao tempo das controvérsias que tiveram na Índia Pero Mascarenhas e Lopo Vaz de Sampaio’. Góis é duas vezes nomeado. Diogo do Couto conhece evidentemente a “Crónica de D. Manuel”, que saíra em 66 e 67. E evoca o autor uma vez pelo que lá não vem, e outra vez por um nome que diz que vem, mas não lhe pareceu o mais apropriado». In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT