Cortesia de pnsintraimcip
A noiva de luto. Isabel (1470-1479). Castelo de Tomar, 1 de Setembro de 1491
«Custava a acreditar que era Verão. Uma brisa gelada filtrava-se, cortante como uma faca, através do único resquício que o grande tapete que cobria a janela deixava desprotegido. Um discreto postigo pelo qual Manuel, duque de Viseu, contemplava a agitação que invadia o pátio do castelo quando ainda não tinham despontado os primeiros alvores do dia. Protectora, a voz do seu aio distraiu-o das suas cogitações:
- Afastai-vos da janela, duque. Está um frio dos diabos, e ainda não estais recuperado das febres e podeis adoecer de novo. Além disso, não haveis dormido...
Dormir! Tentar fazê-lo tinha sido, mais do que uma pretensão, uma utopia. A noite tinha sido um contínuo movimento de palafreneiros e moços de estábulo que aprontavam as cavalgaduras e repartiam a carga entre as azémolas. Entretanto, no interior, as damas encarregadas do quarto da infanta fechavam arca, recolhiam esteiras e agarravam nas coisas pequenas que, à última hora, ainda não tinham sido arrumadas na bagagem.
Como se isso fosse pouco, desde as laudes, o castelo tinha sido invadido pelo eco lúgubre do ‘Miserere’ que diariamente se entoava na capela por alma do príncipe morto. Diogo da Silva insistiu: - Deveis pensar na vossa saúde, senhor. Vede que, morto D. Afonso, o rei nosso senhor que Deus guarde, - benzeu-se como querendo exorcizar o monarca de todo o mal, não tem mais filhos senão D. Jorge, o bastardo, e que Portugal tem depositadas em vós todas as suas esperanças.
Cortesia de esferadoslivros
Manuel teve de reprimir um calafrio para não lhe dar razão. Depois, ignorou-o. Naquele momento estava surdo a tudo o que não fosse o bater das patas dos cavalos, impacientes diante da partida iminente; mudo para pronunciar outras palavras além do nome que lhe martelava a alma; cego para tudo o que não fosse aquela figura enlutada e quase imperceptível que contemplava indiferente o ir e vir dos baús e pertences em volta da sua liteira. - Isabel... - murmurou e cedendo por fim à chamada de Diogo da Silva afastou-se, derrotado, da sacada.
Em viagem, 8 de Setembro de 1491
A D. Isabel, rainha de Castela e de Leão, de Aragão, da Sicília, de Toledo, de Valência, de Galiza, de Maiorca de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jáen, dos Algarves, de Algeciras, de Gibraltar e das ilhas Canárias, condessa de Barcelona e senhora de Biscaia e de Molina, duquesa de Atenas e de Neopatria, condessa do Rossilhão e da Sardenha, marquesa de Oristán e de Gociano
Minha muito querida mãe e senhora minha.
Deveis saber já da minha desgraça. Ainda assim, neste caminho de regresso a casa, atrevo-me a ocupar-vos com o relato dos meus desgostos. Sei que com eles vos distraio da tão alta missão em que estais empenhada. Pouco vale a minha alma dorida diante do propósito de tornar Granada terra cristã. Mas, enquanto vos escrevo, poderei imaginar que vos tenho a meu lado, que me acolheis no vosso regaço e parecer-me-á que pouco a pouco se dissipam as sombras que escurecem o meu presente e me privam de qualquer esperança de futuro.
Cortesia de djhooker
Assim, embalada pela carícia da vossa voz esquecerei o fúnebre cortejo que vai a caminho do Mosteiro de Nossa Senhora da Vitória na Batalha. Tentarei não me atormentar com a imagem do corpo do meu esposo adormecido na escuridão do seu caixão, inerte como o mármore, escoltado pela luz ténue das tochas e com a única companhia dos cavaleiros da sua guarda. Tentarei perceber por que não pude acompanhá-lo, aceitar que assim o recomendam o recato e a modéstia próprios de uma infanta castelhana, que hoje é princesa viúva de Portugal. Esforçar-me-ei por não invejar as carpideiras que embalam a alma do meu Afonso com os seus cantos e até me resignarei por não poder gritar ao mundo que aquele cavalo traiçoeiro não só ceifou a vida do príncipe, como deixou a minha alma desfeita em mil pedaços.
Devo-o à minha linhagem, bem o sei. Por isso, mãe, não me resta outro consolo que este papel que rego com as minhas lágrimas e a certeza de que as minhas palavras encontrarão em vós o eco desejado. A vossa firmeza., o vosso ânimo, serão sem dúvida o melhor bálsamo para, senão curar-me, pelo menos ajudar-me a cicatrizar as minhas feridas. Recordais, senhora, como eu era feliz naqueles dias que desfrutei com o meu marido o príncipe D. Afonso? Quão grande era a minha felicidade naquele 18 de Abril, dia do meu casamento, quando Sevilha cheirava a flor de laranjeira e a cidade toda me parecia a antecâmara do céu? Viva está ainda na minha memória a imagem de meu pai, D. Fernando, que Deus o guarde, participando nas justas e as muitas varas que nelas quebrou. Ainda julgo ouvir o riso alvoroçado da minha irmã Dona Joana nos bailes e banquetes que, por uns dias, a tiraram do seu habitual ensimesmamento; ou o alegre bater das palmas da pequena Catarina que, com os seus cinco anos, descobria um mundo até então desconhecido. Até a tímida e doce Maria não parou de sorrir junto de João, príncipe das Astúrias, o qual, talvez por ser mais velha oito anos, sempre considerei mais como um filho do que como um irmão». In As Mulheres de D. Manuel I, María Pilar Queralt del Hierro, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-247-1.
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