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A historiografia
«A prosa portuguesa desenvolve-se mais tardiamente do que a poesia. Enquanto nas cortes dos primeiros reis de Portugal (como também na de Castela e Leão) florescia a poesia dos trovadores e jograis, uma poesia em galego-português já requintada e consciente da sua qualidade artística, na prosa continuava ainda a utilizar-se o latim. consagrado pela Igreja católica como língua oficial, e autorizado pelo exemplo da antiga Roma, cuja tradição cultural nunca se perdera ao longo da Idade Média.
O latim era, aliás, não só a língua dos teólogos, mas também a dos juristas. Só a partir do reinado de Dinis I os documentos oficiais passaram a ser redigidos em português.
Foi também o latim a língua utilizada, durante os primeiros tempos da nacionalidade portuguesa, para a redacção dos relatos históricos, a princípio apenas produzidos nos mosteiros, os grandes centros de actividade cultural durante a Idade Média, onde se conservara a tradição da historiografia latina.
Crónicas e livros de linhagens
Os textos mais antigos que hoje se conhecem contendo notícias relativas a Portugal ou ao que viria a ser Portugal (alguns ainda anteriores à fundação da nacionalidade) são “velhos anais” latinos, alguns deles redigidos no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e outros em diversos estabelecimentos religiosos do território. Copiados, refundidos, acrescentados, em parte traduzidos para português, esses velhos relatos cronológicos. Entre os quais são de salientar os que dizem respeito à vida e feitos de Afonso Henriques, são os mais remotos testemunhos que possuímos de prosa histórica produzida entre nós.
A “historiografia portuguesa”, porém, só adquire relevo no reinado do monarca Dinis I. O nosso rei poeta parece ter seguido, neste aspecto, o exemplo de seu avô, Afonso X de Castela e Leão. Além de cultivar a poesia, escrevendo, como vimos, em galego-português uma obra lírica valiosa, Afonso X dedicou com efeito à historiografia o melhor do seu interesse, tendo promovido a tradução de obras de historiadores latinos e árabes, com vista à preparação de uma “Cronica General de España” que ele mesmo empreendeu e que havia de servir de modelo a idêntica obra produzida em Portugal. Dinis, seguindo as suas pisadas, manda traduzir para português diversas obras de interesse histórico; assim foi realizada a chamada “Crónica do Muro Rasis”, em que se reúnem diversas obras, relativas às origens fabulosas e aos tempos da dominação romana, goda e muçulmana da Península Ibérica, da autoria do historiador hispano-árabe do século X, Ahmed Arrazi. Esta versão foi feita talvez ainda no século XIII ou começo do XIV pelo clérigo Gil Peres, que introduziu alterações no texto original; é a primeira crónica inteiramente redigida em português.
Cortesia de operavision
A primeira tentativa realizada em Portugal de uma história geral da Península é a “Crónica Geral de Espanha de 1344”, cuja iniciativa se deve com toda a probabilidade a Pedro Afonso, Conde de Barcelos, filho bastardo do rei Dinis I. Esta crónica, de que se perdeu a versão primitiva, inspira-se na “Crónica General de España de Afonso X. mas prolonga-a até época mais recente e aproveita fontes desconhecidas daquela. Inclui, além da notícia da fundação do Condado Portucalense, o relato do reinado dos sete primeiros reis de Portugal, estando incompleto o de Afonso IV, durante o qual foi realizada. Apresenta já apreciável relevo literário, sobretudo nos passos em que utiliza como fontes algumas narrativas em prosa baseadas em romances épicos jogralescos. Pelos recursos de estilo que mobiliza, diálogos vivos, suspensões que criam a expectativa do leitor, interrogações e exclamações retóricas, revela o domínio da arte de narrar que a prosa portuguesa começava já a possuir.
É também na época de Dinis I que se inicia entre nós outro género histórico, este bem característico da Península, e em que a literatura portuguesa apresenta prioridade:
- os “nobiliários” ou “livros de linhagens”, relações da genealogia das principais famílias nobres do reino.
Esses registos da nobreza foram inicialmente organizados com intuitos práticos:
- evitar uniões conjugais dentro das famílias (o direito canónico proibia os casamentos entre parentes até ao 6º grau), assegurar a validade de certos direitos hereditários, e também conservar a memória dos feitos dos ‘filhos d'algo’, para exemplo e estímulo dos vindouros.
O que confere a estas obras interesse literário não é, naturalmente, a seca enumeração de nomes encadeados pelo parentesco, mas a introdução do relato de episódios, uns lendários, outros históricos, de que são protagonistas os senhores cuja genealogia se regista. Relatos como a lenda de Gaia (episódio romanesco da Reconquista cristã), a história da Dona Pé de Cabra, a da Mulher Marinha e outros semelhantes dão um colorido de maravilhoso a estas obras, e vieram a inspirar escritores como Alexandre Herculano e Garrett.
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Pela variedade e abundância dos episódios narrados e pelo valor histórico e literário de certos trechos, como a célebre narração da batalha do Salado, que é uma das mais belas páginas da primitiva prosa portuguesa, o 3º livro de linhagens é de longe o mais importante e constitui documento do maior interesse para o estudioso da história e da literatura portuguesas». In Ester de Lemos. Vertentes da Prosa Medieval, texto escrito e divulgado em fotocópias, pela FCG, em 1979, A Prosa Medieval Portuguesa, Fundação C. Gulbenkian, 1997.
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