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In Memoriam de JLT
«Aqui nada se encontra, pois, de parecido com a perspectiva
clerical dos “Annales domni Alfonsi”. Afonso Henriques tinha obrigações para com
os nobres e as comunidades concelhias e devia cumpri-las sob pena de subverter
a ordem estabelecida, escapou em S. Mamede, a uma humilhante derrota, não por
seus próprios méritos mas em virtude do auxílio que no último momento lhe
trouxe um nobre, Soeiro Mendes. Segundo este texto, não devia absolutamente
nada ao clero e não hesitava em tratar brutalmente o legado do papa;
arrogava-se o direito de nomear ele próprio um bispo, sem consultar nenhuma
autoridade eclesiástica e sem se preocupar com a sua cor negra (referência
provável, mas já obscurecida por um conhecimento vago da questão, à sua origem
moçárabe). O mesmo texto procura explicar a sua derrota por ele ter cometido
uma espécie de infracção sacrílega ao agredir a sua própria mãe, o que é
apresentado muito mais como o comportamento do herói que ousa sair fora dos caminhos
convencionais comuns a todos os homens do que propriamente como castigo de uma
acção moralmente reprovável.
O texto parece estar incompleto. António José Saraiva
admite, provavelmente com razão, que relatasse com algum pormenor a batalha de
Ourique, resumida em breves palavras na versão que hoje possuímos e omitida
pelos clérigos que no século XIV copiaram a versão já escrita. É possível que
lhes parecesse um relato demasiado diferente do que era dado pelos escritos
latinos do género dos “Annales”. Mas já então se relacionava a batalha com o
escudo heráldico do rei, onde figuravam as cinco quinas; e depois a batalha nos
campos de Ourique e venceu-a:
- E de ali em diante se chamou el-rei Afonso de Portugal e entom tomou por armas as cinco quinas.
De qualquer maneira, para os cavaleiros que tinham sucedido
ao bando outrora comandado pelo rei, era evidentemente muito mais exaltante
sublinhar as suas capacidades militares, o seu aspecto humano, os seus excessos
e a sua rude independência para com os poderes clericais do que sobre-humanas
virtudes morais que não lhe conheciam e uma submissão ao clero que não podiam
aceitar.
É curioso comparar a “Gesta” com o “Relato da conquista de
Santarém”, um texto latino ainda da mesma época, redigido na primeira pessoa e
em nome do rei, e do qual resulta uma imagem que se aproxima, tirando os
excessos, da fornecida por aquela. Ao chamar os seus companheiros “comilitones
mei”, ele aparece como verdadeiro chefe de um bando de cavaleiros e mesmo como
um camarada. O relato representa, certamente, a memória pelo menos de um dos
antigos combatentes que professaram em Santa Cruz e que recordavam também as
virtudes militares do seu chefe em termos mais moderados do que os do
hipotético jogral autor da “Gesta”, intérprete dos camaradas que haviam ficado
no mundo e insistindo mais nas suas vitórias do que nas suas trágicas derrotas
(36)». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope,
Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN
0871-7486.
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