Retratos vivos
«O que já ocorreu é sempre esse desaparecimento impossível de conhecer,
esse mundo engolido nos confins da vulva daquelas que nos fizeram crescer, e
que regressa, com o seu silêncio característico, chamo silêncio à linguagem-que-já-não-é-órgão-de-nada,
aquando das depressões nervosas, acelerando o ritmo cardíaco, angustiando a
garganta, começando por fascinar os olhos e só depois a visão, sonhando.
Dominando, animando, transportando, enlaçando e, por fim, matando os amantes. O
que acontece é que a voluptuosidade feminina dispõe a mulher para o transe
porque a sua aparência quando se entrega ao prazer reflecte a imagem mais
próxima desse transe. Sicut cadaver.
Um corpo nu de mulher afogada. Um corpo molhado de mulher atirada pelas
ondas para a margem. No Japão antigo, morrer, lançar-se à água, morrer resplandecendo,
chorar, parecem associados. Não é que o prazer sexual se assemelhe à
infelicidade. No entanto, não se pode contestar que a voluptuosidade é extática.
O espírito abandona um corpo deitado. A voluptuosidade é, em si, uma viagem
xamânica, indizível, indescritível.
Perder as forças, perder o sangue, derramar-se debaixo de si próprio,
cair de costas, gemer. Na língua japonesa, os gritos do prazer são denominados choros
e mortes. E, de facto, será
possível distinguir chorar e molhar? Morrer é não só o que remete para
o estertor da agonia como o que evoca a perda final das forças. Não a petite
mort da língua francesa, mas a morte mais viva do que a morte. A
morte intensa, lasciva. Explodir em soluços é a expressão
que, no extremo oriente do mundo, descreve a alegria das mulheres. O perigo,
mais ainda do que a vergonha, impõe a dissimulação absoluta a essa viagem para
fora do mundo dos homens, de tal forma que mesmo a história que a conta não
deveria ser sabida.
O romance francês do século XIII intitulado A Castelã de Vergy é a
obra-prima que descreve esse mundo-no-fim-do-mundo. Essa viagem ao extremo
nascimento do mundo é dupla: passa do reconhecimento excessivo das mulheres e
dos homens que nunca vimos para o não reconhecimento dos traços daqueles que
mais amamos no mundo.
Em francês antigo, chamava-se monte (cobrição) ao coito de frente.
Chamou-se retrato vivo à parecença entre o rosto do semeador e o rosto
reproduzido do semeado. Em francês antigo, chamava-se rencontre (encontro) ao focinho
do veado visto de frente. Chamava-se massacre depois de a sua cabeça ter
sido cortada pelo caçador. Foi entre os crustáceos que começou o acasalamento
de frente. Os homens antigos julgavam que essa postura os distinguia dos outros
mamíferos e da sua bestialidade, falando com propriedade, desavergonhada, e,
como os dois rostos ficavam frente a frente, acreditavam que os olhos da amante
se impregnavam dos traços do amante que se mantinha por cima dela e a possuía.
Quanto mais uma mulher amava um homem que mergulhava nela, mais moldava no seu
interior uma pequena imagem parecida com esse modelo em que o seu amor se
inspirava e que caprichava diante dos seus olhos. No momento do prazer o macho (…)
o seu retrato no ventre daquela cujo rosto sugava.
No verso 1218 do livro IV de De natura rerum, Lucrécio afirma:
- Há recém-nascidos que se parecem com um avô, ou um bisavô, porque houve um sem-número de átomos, vindos da cepa primordial, de pai para filho, que se foram acumulando no abrigo obscuro dos corpos daqueles que se enlaçam. Em grego bizantino, o filho era considerado homoousios do pai.
O filho e o pai eram a encarnação de uma mesma substância que os
precede. Não só eram do mesmo sangue, mas também do mesmo esper… Eram consubstanciais. Para além de ser
homoousios
do pai, o filho é o seu homónimo. Devido ao patronímico que herda, a sua lenda
é a lenda dos seus ascendentes. No caso dos reis de França, só o número é que
diverge. Ou no caso dos papas que, em Roma, reinam sobre a Igreja romana. Ou no
caso dos grandes artistas japoneses. O filho é uma reminiscência do pai. Toda a
descendência dos pais é filial, toda a descendência é uma reminiscência única
do rosto antepassado. A cópula é a fábrica das imagens idênticas. Os filhos são
as imagens vivas dos pais. Retratos vivos
homeomorfos, homoousíacos, homónimos. Há apenas um patronímico, e pequenos
nomes próprios pouco numerosos, comuns a todos, que os especificam e se juntam
a esse patronímico, não como números, mas como expoentes.
O amante que virá a ser pai é um pintor cuja única tinta é o esper… esbranquiçado
que, desde a alvorada do mundo natural, transita de corpo para corpo em todos
os ascendentes do sexo masculino através do pequeno pincel. Penicillum
é o termo latino que designa o pequeno
pénis. Substância que acaba por emergir, pálida como um fantasma.
Licorosa, translúcida, brilhante, rara. Jade originário. Último e, por isso mesmo,
preciso vestígio da primeira vaga vital da Pantálassa que introduziu a
vida no mundo». In Pascal Quignard, Histoiresd’Amour du Temps Jadis, Editiones Philippe
Picquier, Arles, 1998, Histórias de Amor de Outros Tempos, Retratos Vivos,
tradução de Maria Vilar Figueiredo, Edições Cotovia, Lisboa, 2002, ISBN
972-795-043-4.
Cortesia de Cotovia/JDACT