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«A “Divina Comédia” é, principalmente, uma formidável obra de fantasia e
de representação poética, talvez um dos pontos limites que a inteligência
humana pode alcançar.
Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao
amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma
pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a
imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o
passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso.
Dante o segue.
Inferno
Canto I
No céu a aurora já resplandecia,
subia o sol, dos astros rodeado,
seus sócios, quando o Amor divino um dia
a tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
da fera o dorso alegre e mosqueado,
a hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
que ao meu peito o pavor de novo lança.
Que me investisse então cuido inquieto;
com fome e raiva atroz fronte levanta;;
tremer parece o ar ao seu conspeto.
Eis surge loba, que de magra espanta;
de ambições todas parecia cheia;
foi causa a muitos de miséria tanta!
Com tanta intensa torvação me enleia
pelo terror, que o cenho seu movia,
que a mente à altura não subir receia.
Como quem lucro anela noite e dia,
se acaso o tempo de perder lhe chega,
rebenta em pranto e triste se excrucia,
a fera assim me fez, que não sossega;
pouco a pouco me investe até lançar-me
lá onde o sol se cala e a luz me nega.
Quanto ao vale eu já ia baquear-me
alguém fraco de voz diviso perto,
que após largo silêncio quer falar-me.
Tanto que o vejo nesse grão deserto,
- “tem compaixão de mim” – bradei transido
“quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”
“Homem não sou” tornou-me – “mas hei sido,
pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.
“Nasci de Júlio em era retardada,
vivi em Roma sob o bom Augusto,
quando em deuses havia a crença errada.
“Poeta, decantei feitos do justo
filho de Anquíses, que de Tróia veio,
depois que Ílion soberbo foi combusto.
“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
que o prazer todo encerra no seu seio?
In Dante Alighieri, A Divina Comédia, Atena Editora, 1955, Tradução de José
Pedro Xavier Pinheiro (1812-1882), Digitalização de eBooks Brasil por Helder
Rocha, 2003.
Continua
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