Cortesia
de purl
«D. Duarte (1391-1438) nasceu em Viseu. Era filho do rei D. João I,
Mestre de Avis, e de D. Filipa de Lencastre. Foi o décimo primeiro rei de
Portugal e o segundo da segunda dinastia, tendo ascendido ao trono com a morte
de seu pai em 1433. D. Duarte foi um rei dado às letras, tendo fomentado a
tradução de autores latinos e italianos e organizando uma importante biblioteca
particular. Ele próprio nas suas obras mostra conhecimento dos autores latinos».
In História de Portugal.
LEAL CONSELHEIRO
Por que os amores fazem mais sentimento
No coração que outra benquerença
«Os
amores no coração fazem mais rijo e continuado sentimento que outra
benquerença, por estas razões:
Primeira,
por a contrariedade do entender que os contradiz, mostrando de uma parte quanto
mal por eles se faz, defendendo que se não faça, e doutra o desejo que muito
com eles reina, requerendo com grande afincamento que persevere no que há
começado, fazem uma porfia que continuadamente dá grã pena de espírito, afã e
cuidado, do que mui amiúde os namorados se queixam, a qual se não pode passar
sem rijos sentimentos.
Segunda,
porque rijo, desordenado e continuado desejo, ciúmes e vanglória fazem no
coração grande sentimento. E porquanto estes reinam mais com amores que com
outra benquerença, porém fazem maior sentido.
Terceira,
porque assim como dizem as cousas costumadas não fazerem tanto sentir, por esse
fundamento aquelas que se abalam convém que o acrescentem. E pois que os amores
nunca dão repouso por fazerem contentar de mui pequeno bem, assim como de uma
boa maneira de olhar, gracioso rir, ledo falar, amoroso e favorável jeito, e de
tal contrário se assanham, tomam suspeita, caem em tristeza, filhando tão rijo
cuidado por uma cousa de nada, como se tocasse a todo seu bom estado, que o não
deixa enquanto dura pensar em al livremente, mas como aquele que tem véu posto
ante os olhos vê as cousas, dessa guisa ele pensa em todas outras fora do seu
fundamento por cima daquele cuidado que lhe faz parecer todas as folganças
nada, não havendo aquela que mais deseja. E se a cobrasse, que tristeza nunca
sentiria, o que é tão errado pensamento como bem demonstram muitos exemplos, os
quais não quer consentir que se creiam, posto que claramente de demonstrem,
pensando que nunca semelhante como ele sentiu que o contrário pudesse sentir, o
que adiante as mais das vezes se demonstra mui desvairado do que parece.
E
por aqui se pode bem conhecer, posto que não caia em outro erro, quanto perigo
é trazer um tal cuidado assim reinante em ele, que o não deixe pensar em cousa
livremente sem haver dele lembramento, e como constrangido cuidar em qualquer
outro feito por pesado que seja, para o coração no que tais amores lhe mandam
quer embargar seu sentido, desamparando todos os outros por necessários que
sejam. E por estas razões convém que traga e faça maiores sentimentos que outra
maneira de amar.
A
boa amizade de entre marido e mulher e outros verdadeiros amigos disto sentem o
contrário, porque, quanto ao primeiro, não passam tal contrariedade de entre o
entender e vontade, porque ambos são dum acordo; quanto praz ao coração de
amar, tanto assim julga o entender que é bem de se fazer.
Ao
segundo, desejo rijo não sentem, porque vivem em deleitação e contentamento;
tais ciúmes não devem haver por a grande segurança que um do outro, sem algum
temor, sempre tem. Se disserem que muitos casados que muito se amam têm ciúmes,
respondo como já disse que o amor dos casados participa com todas maneiras de
amar. E quanto mais é sobre amores por desejo de coração que por conhecimento
de virtude segura de ambas as partes, a qual se requer na real maneira de
amizade, os semelhantes senti-los-ão, porque ainda que muito se amem, não
chegam a verdadeiro estado dos mui bons amigos, entre os quais não convém
alguma suspeita de erro ou falecimento que um em contra do outro a seu cinte
jamais nunca faz, nem quererá fazer, antes vêm muitas da condição revessada de
cada um ou falecimento de bondade e de boa vontade que no outro vê ou suspeita.
Mas entre aqueles casados que esta mui perfeita maneira de amar
afirmada por grande experiência bom conhecimento que um do outro tem havida, os
ciúmes são de todos escusados ou tão levemente sentidos que a cada um não fazem
alguma torvação ou empacho». In João Morais Barbosa, IN-CM.
continua
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