sexta-feira, 4 de maio de 2012

Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves: Parte IX. Painel da Relíquia (3). Uma obra-prima da pintura portuguesa do século XV, pintada a óleo entre 1470 e 1480. «Se a caixa vazia se destinasse aos ossos de S. Vicente ou de algum dos seus émulos, como se costuma pretender, como explicar o aspecto da figura que a transporta?»


Cortesia de paineis

Painel da Relíquia
Parte 3

Três Atitudes Exemplares
Qualquer solução da charada global tem que passar por uma explicação convincente, não só dos objectos simbólicos deste painel, mas também da forma como eles são directamente exibidos perante o observador. Enquanto, por exemplo, o livro do painel do Infante, legível de fora do políptico, é mostrado a uma das figuras presentes nesse painel, o livro do judeu não tem leitores dentro da pintura e destina-se apenas a ser exibido para fora dela.

Painel da Relíquia
Cortesia de paineis

Outro tanto se pode dizer da relíquia. O único alvo possível das atitudes das figuras vermelha e negra é o próprio observador situado fora da pintura, e isso recorda-nos a figura prostrada do painel dos Pescadores que reza igualmente para fora dela, e não na direcção de algum hipotético objecto central de veneração nos painéis maiores. Embora ao longo do políptico, diversas figuras olhem na nossa direcção, apenas nestes dois painéis, “Relíquia e Pescadores”, parecem existir figuras agindo” na nossa direcção, como que solicitando a nossa atenção ou oferecendo algum tipo de recomendação exemplar.
No painel dos Pescadores, é a própria atitude da figura prostrada que funciona desse modo; no caso da relíquia e do livro hebraico são dois objectos que nos são apontados directamente. E também a terceira figura do painel da Relíquia parece concebida para transmitir alguma ideia exemplar. O seu aspecto humilde, associado à circunstância de carregar um fardo – ainda que esse fardo seja algo estranho, parece traduzir muito mais uma intenção moral que uma simples cena realista. Se a caixa vazia se destinasse aos ossos de S. Vicente ou de algum dos seus émulos, como se costuma pretender, como explicar o aspecto da figura que a transporta? Ainda que o pintor tivesse a estranha ideia de incluir o distribuidor funerário, o «caixão» está vazio, por que razão lhe emprestaria um aspecto tão lamentável, sem nenhuma intenção moral subjacente?...
Três atitudes e objectos a decifrar, portanto, no painel em que mais solicitações parecem ser dirigidas ao observador.

Cortesia de paineis

Uma Vara que são Duas
Se restassem algumas dúvidas sobre a profusão das pistas semeadas ao longo dos seis painéis – encobertas por uma constante impossibilidade de resolução, mas denunciadas por esse mesmo carácter sistemático, as duas varas que a figura do pobre caminhante segura, no prolongamento uma da outra e criando a ilusão de se tratar de uma única, poderiam funcionar como uma indicação categórica da existência da charada.
Que pode querer o pintor significar com duas varas que parecem uma, senão a própria mensagem: «O que parece único é dual»? Adiante veremos como coexistem no políptico dois sentidos inteligíveis, um literal e anterior à apreensão da charada, outro posterior à sua resolução». In Painéis de São Vicente de Fora.


Cortesia de Painéis/JDACT