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In Memoriam de JLT
«Entre as aguadeiras que ‘batiam a água’ mais activamente, no poço de Cheok Chai Un, destacava-se A-Leng, na altura, de 22 anos saudáveis e desabrochantes de vida. Incansável, ia e vinha, em volta do poço, desde manhã cedo, carregando os baldes de água, transportando-os, um em cada ponta do varapau que punha ao ombro, equilibrando-se donairosa, o corpo retezado com o peso, as ancas movediças, de cinzelada curva sensual, rebolando no ‘tun-sám-fu’, apertado.
«Entre as aguadeiras que ‘batiam a água’ mais activamente, no poço de Cheok Chai Un, destacava-se A-Leng, na altura, de 22 anos saudáveis e desabrochantes de vida. Incansável, ia e vinha, em volta do poço, desde manhã cedo, carregando os baldes de água, transportando-os, um em cada ponta do varapau que punha ao ombro, equilibrando-se donairosa, o corpo retezado com o peso, as ancas movediças, de cinzelada curva sensual, rebolando no ‘tun-sám-fu’, apertado.
Para ela, não havia estações do ano. Sempre a trabalhar, no Inverno, cobria-se
duma jaqueta de lá, o ‘tun-sám-fun’ de pano grosso que mal a defendia do frio,
no Verão, usava-o de pano fino, meio-nu nos braços, marcado nas costas e nas
axilas pelo suor. No conjunto das companheiras do ofício, era a mais alta e a
mais esbelta. Por mais que enfaixasse pudicamente os seios, por baixo da cabaia,
como era o costume da época, entre as classes humildes, o vago contorno
excitava a imaginação, como promessa dum tesouro escondido. Os olhos, em
acentuada amêndoa, terminados em bico, ligeiramente recurvados para cima,
tornavam a fisionomia oval, de malares proeminentes, irresistivelmente
atraente. Quando sorria, duas covinhas da face emprestavam-lhe um ar ladino.
Falava alto, com voz timbrada, tinha as maneiras bruscas duma profissão
dura, ao ar livre, houvesse sol ou chuva, a maior parte das vezes, esplendia em
boa disposição. Ria, mostrando os dentes regulares, muito brancos que esfregava
com pau de alcaçuz, tagarelava incessantemente e dominava o grupo. Quando
zangada, a sua voz estilhaçava-se, de lés a lés, em torno do poço, o rosto
encandecido, as narinas inflando no nariz pequeno.
Não dava trela aos rapazes. Aos mais atrevidos, fazia-lhes frente com a
língua, respondendo, taco a taco, aos piropos grosseiros. Quando isto não
chegava, enfrentava-os com o varapau de transportar os baldes, pronta para a
cacetada. Ganhara assim respeito, no seu meio, embora sozinha, sem outro membro
de família para a defender. Tacitamente, ascendera à categoria de princesa das
aguadeiras, já que a rainha era uma mulher avantajada, cerca de quarenta anos,
que imperava no poço, a Abelha-Mestra de todo aquele mulherio, superintendendo
como conselheiro, casamenteira, curandeiro e parteira.
A Abelha-Mestra tratava A-Leng como pupila. Considerava-a sua herdeira
e passar-lhe-ia a posição e os ensinamentos, se não houvesse outros
acontecimentos, a alterar o curso normal das coisas.
Quando a Abelha-Mestra se enfurecia, calava-se o poço inteiro, o casario
em volta recolhia-se, a criançada irrequieta debandava espavorida. Só A-Leng se
atrevia a chegar-se a ela, serena e convincente, enfrentando corajosamente o
primeiro embate da sua cólera e acalmando-a, a pouco e pouco. Dado que era a
única, sobre quem nunca ninguém vira fustigar aquela ira terrível, muita gente,
para solicitar um favor à Abelha-Mestra, fazia-o por intermédio da pupila. Por
consequência, a sua situação, no bairro e naquele pequeno mundo peculiar, gozava
de prestígio assegurado.
A-Leng tinha a sua vaidade. Era a trança grossa dos seus cabelos que
rolavam, uma vez soltos, até o fundo das costas. Tratava-a com extremo apuro,
demorando-se na penteadeira favorita, em cujas mãos estoicamente sofria
tormentos, sem murmúrio, dócil como a mais dócil das donzelas. Mas era exigente.
Enquanto a cor negra das madeixas, embebidas em óleo de madeira, não alcançava
o luzimento que desejava, enquanto houvesse um fio rebelde, fora do lugar, e os
nós da trança não tivessem a grossura ideal, não descansava.
Sentada na berma da rua, rigidamente direita e composta, num banquinho
muito incómodo, diante do pardieiro da penteadeira, não muito longe do poço, as
mãos sobre os joelhos, as pernas encolhidas, gastava o tempo que fosse
necessário para o penteado. De todas as cabeleiras que se submetiam aos
cuidados da penteadeira, era esta a preferida, pelo espesso manto negro, pela
voluptuosidade que sentiam as suas mãos quando esticavam os fios de cabelo, fortes
e resistentes. Quando a penteava, a penteadeira sorria, contava histórias, atraindo
um grupo de ouvintes que se acocoravam, em volta, como açafatas duma princesa».
In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN
972-9440-80-8.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT