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A
Imobilidade
«(…)
Recua ainda e ainda. Recua. Logo em baixo a
escada faz uma curva ligeira. Pensamos que ela vai cair. Sabemo-lo. Desce um
degrau, outro e outro a recuar sempre e sempre. Não a avisamos, não gritamos e
ela recua debaixo do olhar indiferente da outra. Será uma acusação? Os saltos
dos seus sapatos brancos têm na pedra carcomida um ruído seco, em desequilíbrio
precipitado. Não gritamos, não a avisamos e ela recua. Recua ainda e ainda,
presa de um terror secular que não cala nos olhos.
Movimentos
Olha-os fixamente, por segundos. Na claridade
extenuante do dia os contornos quase que se dissolvem e as diferenças de plano
quase que desaparecem. Não existem saliências curvas, mas sim agudas, ásperas.
Olha-os fixamente. O ódio confunde-se-lhe às vezes nos olhos.
Muito lentamente, a custo, fecha as pálpebras
azuladas e geme baixo; um gemido contínuo, de dentes cerrados, os punhos a
crisparem-se de cada lado do lençol e o rosto de uma palidez de morte. Mantém
os braços abertos, a respiração presa, por vezes abandonada. Abandonada, por
vezes como que oferecida. Tenta ainda fugir-lhe, arrancar-lhe as coxas
entreabertas à pressão da sua língua, ao tacto do seu hálito, porém, mal ele
parece libertá-la ela submete-se, ansiosa, apenas com uma ponta de rebeldia no
movimento do corpo. E o gemido torna-se mais sincopado, contornado,
entrecortado.
Volta-se defronte do espelho, apanha a cinta estendida na borda da cama.
Vira-se: os seios vêem-se-lhe, queimados, negros de sol, no pequeno soutien de
renda aberta. Parecem totalmente nus. Olha-os assim, nus. O calor alastrou pelo
quarto, é um calor peganhento, feito de pequenos odores e de pequenas cores
dissimuladas. Os dedos deslizam sobre a pele, descendo suavemente.
Corre ainda sem nunca se voltar. As mãos levantam o tecido pesado do fato
para o manter afastado do chão. Mesmo assim arrasta consigo pequenas pedras e a
poeira descolorida que se desloca brandamente perto dos arbustos; do buxo
aparado há pouco. O olhar mantém-se fixo no labirinto geométrico do jardim. Há
um gesto qualquer esboçado nos seus braços.
Mergulha a mão esquerda no aquário. As dez horas o calor iniciar-se-á pelo
portão; alastrando-se no ferro do portão. Agora apenas treme de frio e quase
grita; a outra mão paira perto da boca. E para quê? Os dedos ficam a pingar
sobre o tapete a água tépida que haviam absorvido no aquário.
A mulher olha à roda a ver se alguma
coisa falta: as jarras, as flores, ou as pratas? Desvia a cabeça do raio de sol
que tropeça no móvel, no cristal da taça azul nesse mesmo móvel. As flores:
debruçada, inquieta-se sobre elas. O olhar desinteressado, dá novamente volta à
sala. Hirta na penumbra quente, escuta o tremendo silêncio da tarde.
Tropeça numa fuga detida por acaso.
Encosta-se à parede lisa e inclina a cabeça junto ao frio branco da parede do
corredor. Os joelhos vergam-se-lhe. Sente que a palidez lhe cresce num suor
brando entre os seios soltos. E uma lentidão ou suor de cama.
Move os lábios como para acrescentar
o silêncio. Os lábios, em silêncio na sala; a um canto da sala. Com um copo se
possível amarfanhado nas mãos, olha-os. Tem de se mover entre eles na mesma
sala: é um dever. Mas parece-lhe antes ser a sala que se move debaixo dos seus
pés; pelo menos é essa sensação. E ela imóvel a deixar-se deslizar assim, apenas
com um medo terrível de cair. Porém, pode tranquilizar-se: está tudo em ordem.
Sorri. Um pobre sorriso usado em que ninguém acredita.
E devagar ela movia os braços e
sorria, saía para a rua e andava devagar, demorando os passos, os braços
pendentes, a boca seca, os olhos deslizando, os olhos roçando ao de leve as
pessoas, contornando devagar as pessoas, os olhos retendo o tom mais agudo de
um casaco ou o reflexo facetado de uma montra. Do pulso esquerdo caía-lhe a
pulseira acobreada sobre a mão pendente junto à saia. E devagar distanciava-se
de casa, percorrendo todas aquelas ruas, voltando depois para trás, revendo
todos aqueles prédios, contendo todos aqueles prédios.
Era pequeno, preto, com uma espécie de crista. Ficava-se a olhá-lo
durante muito tempo esquecida de tudo numa estranha amnésia consciente, quase
que construída de propósito, os olhos fixos no aquário de vidro grosso, uma
bola enorme, transparente, a um canto, quase encostado ao cinzeiro do lado
esquerdo da parede perto da varanda mergulhada no sol. Fixava-o absorta e
imóvel como se tudo dependesse daqueles movimentos circulares em redor do vidro
ou do ruído quase imperceptível da água. Atenta, as mãos mergulhadas nos
cabelos; apoiadas nos malares salientes; tinha nos olhos um ar perdido,
absorto, ávido. Por isso mesmo ávido». In Maria
Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção
Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
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