«(…) Lembro-me dos invernos com
uma sementeira de alguidares e panelas no soalho a fim de receberem a chuva que
descia em ampulheta das fissuras do tecto, e, mais recuada no tempo, da madrinha
do meu pai a coser peúgas e ceroilas sob a cerejeira estéril das traseiras, que
erguia uma das patas do tanque de lavar a roupa com a força de bíceps das
raízes. E esta memória remota trouxe-lhe de súbito ao nariz o aroma de bosta de
vaca dos derradeiros meses, desde que a telefonia anunciou a independência de Angola
decretada por Sua Majestade, no rescaldo de um motim, durante as cortes de Lixboa,
o odor do suor, da diarreia, do medo, quando colávamos em pânico os armários aos
caixilhos porque daqui a nada uma coronha desventra o aparador, daqui a nada
uma sapatilha esmaga o tapete a rir-se, daqui a nada o MPLA principia a disparar
ao acaso e as nucas estoiram como figos numa pasta de carne branca e de grainhas
vermelhas, o que julgaria o Infante, se vivo fora, lá na escola de Sagres, desdobrando
mapas e consultando estrelas frente às janelas do mar, enquanto os seus capitães
perseguiam dinamarquesas nas praias de Albufeira e Gil Eanes se apresentava em
Lagos, pingando como um noivo exausto, com um ramo de florinhas murchas na mão.
Disse Nem por sombras e pensou Claro que não, visto que em dezoito anos de África
não recebi uma carta, um postal, um presunto, um retrato sequer. Quase que
aposto que morreram todos há séculos, sepultados sob o lajedo das igrejas com o
nome em latim apagado por solas de noviças, acomodados no tecido cor de pérola dos
caixões, vestidos de casacos de xadrez, de xailes lilases, de blusas claras, de
mãos postas e malares agudos como as estátuas jacentes nas criptas das capelas.
A minha família de queixo
amarrado e moedas de prata nas órbitas a fitar-me com reprovação, Este é o que foi
para Loanda morar no meio dos pretos em lugar de explorar uma tabacaria na Venezuela
ou um escritório de transportes na Alemanha, este é o que montou um comércio de
talhante nos musseques, vendia costeletas aos cafres, fez um filho a uma
mulata, habitava um prefabricado da Cuca, nem um coche, nem um batel possuía, aos
domingos espojava-se na sala, de calções, a ouvir relatos de futebol e a comer mer…
de sanzala, o escrivão da puridade aplicou-se em apontamentos góticos adiante
do meu nome, sacudindo as orelhas entendidas como se partilhasse o desprezo ou
o desgosto dos meus tios, e o diácono que o acolitava, com uma coroa de cabelos
e bochechas de Santo António de azulejo insistiu Nenhuns parentes, nenhum
cunhado, nenhuma relação distante?, à medida que preenchia formulários,
multiplicava números numa calculadora de bolso, me estendia um papel para assinar,
Aqui, entornava uma gota de lacre no termo da página e a oferecia ao outro para
que apusesse o anel de armas na nódoa de sangue fumegante. A mulata, de sandálias
de plástico e lenço amarrado na testa, que antes de morar comigo servia à mesa num
restaurante da Ilha,abismava-se num cartaz de férias orientais que exibia um casal
de grinaldas ao pescoço refastelando-se de caneca de cerveja num poente
marinho. Ninguém, disse eu, só a mobília do quarto que há-de chegar no próximo galeão
se a não desviaram no porto com essa história de roubalheira, democracia e socialismo,
e orgulhei-me das mesinhas de cabeceira com maçanetas de loiça, da consola de três
portas para garrafas, cristais e copos de água e de vinho, para além da cómoda da
roupa de sumptuoso tampo de mármore no qual se gravavam as veias que se ramificam
de leve nas pálpebras das crianças, ao mesmo tempo que o escrivão me entregava,
com a pompa de um diploma de menção honrosa, uma notificação ilegível, Tem oito
dias para comparecer nesta repartição, agora veja lá. Nas minhas costas um
plebeu de muletas protestava contra as demoras da burocracia, Em saindo daqui
apresento queixa aos jornais, e eu cessei de ouvi-lo porque me lembrei de novo de
Coruche e da madrinha do meu pai a coxear para casa, com a cesta das molas da roupa
na mão, desfocada na latada das videiras. Quanto ao comer e ao dormir, explicou
o escrivão alheio ao das bengalas, sem olhar sequer ou se preocupar nunca com a
mulata ou o miúdo que se me enrolava nas pernas, de boca aberta numa espiral de
angústia, arranjámos-lhe lugar na Residencial Apóstolo das Índias, Largo de Santa
Bárbara, meta-se num autocarro e pergunte pelo senhor Francisco Xavier, o que se
segue». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa,
2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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