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Primeira
Carta III
(…) Não te respondo a carta escrita; dita para
mim ou feita em meu sentido e facto aceite, em duas direcções, numa aparente
ambiguidade: a tua infelicidade por me amares ou tua maior infelicidade em não
me teres amado nunca, se possível. Se possível, digo, pois a paixão que me
dedicas existe tendo-te muito mais a ti por objecto que a mim, na realidade; e
apesar do sofrimento que lamentas é muito mais ela em teu proveito (te
enriqueces, te humanizas, te revigoras, afirmas), e por isso me amas. Que em
meu proveito só o é pela atenção que me dedicas, pelo uso que já fiz dela
contra a minha solidão, pela fuga que me obrigas a empreender todos os dias. Fuga:
ao repelir-te porque me exiges, fuga ainda enquanto te aceito, te pareço
aceitar apenas, pois recuso o amor como cedência a outrem, ou condescendência.
Por isso, irmã, foi a ti escrita
a carta que tanto se hesita sempre escrever a quem ou de quem nela se fala e
fira, mas a quem leva mensagem. No fundo a quem se acusa de não ser (mos) sombrinha
chinesa na mão, antes sol tão intenso que cega mas deslumbra. E de novo nos
encontramos juntas as três igualmente aqui, como em muitos outros tempos e
decisões: recusando sermos sombra, sedativo, repouso de guerreiro. Guerreiros,
nós, mulheres de corpo inteiro e segura mão.
Riso breve deixamos sobre as coisas,
retornando de onde nunca fôramos. E assim nos expomos umas às outras,
contando-nos talvez um homem, sim, porém também de nós nem sempre os homens, mas
o nosso espaço vazio, a nossa claridade sufocante, a voragem de tudo o que
tocamos, a nossa constante descoberta dos contornos imprecisos, dos perfis
exactos, da dureza das formas. De ti te dizes fluida, de mim vidro e de ti
outra milhano (mosto, mastro). De mim desejo: o corpo à descoberta do prazer e
a paixão que me engana; de imediato, desejo, e eu sobre a paixão como se a possuísse
toda num longo acto de amor sem esperma mas meu suco.
Possível será ser-se mulher sem
se ser fruto?
Por tal me chamas rosa seguindo
eu sem decorar nenhuma sala, nesta mansa sede que calo ou costumo calar, não a
vocês. Por tal ou para isso nos sentimos perto. E se ainda hesitamos (quase
sempre tu, pedra-fêmea, tua tranquila transparência) mais não é que a força do hábito
de desconfiarmos sempre ao pé dos outros. Hábito de usos e modos, medos bravos:
hábitos de útero e convento. Hábitos de fatos e fitas a formar-nos as formas.
De súbito se despe Mariana para
mãos que a firam, a provoquem, a desvariem na sua própria descoberta. Não sei
se sonsa como afirmas nas cartas, se esperta na lástima ostentada, assim se
desculpando, se ilibando, apossando-se, todavia, do cavaleiro, servindo-se dele
como alimento da sua paixão, sustento da sua liberdade. Que com paixão se
desclausura a freira.
Não sendo o cavaleiro mais do que
pretexto, motivação. Homem que pensou montar e foi montado. Encontrará o amor
outra maneira senão esta: aquele que utiliza ou é utilizado. Aquele que devora
ou é devorado; se finge devorado e por sua vez devora?
Não me devoras ou domas pelo
lamento. Já te esqueço hoje e não desejo. Já me afasto e venço, já te vendo ou
troco mesmo pela calma tranquilidade em que me vejo. Recusa-me, escrevo-te, mas
tu não me recusas vivendo de esconsas datas e memórias reatadas só contigo,
certamente com elas te masturbando, isso te chega, ou não te chega, então me
acusas de manso e fingimento em subtil maneira de tristeza, dizendo-me quereres
mesmo em teu tormento (eu factor de tormento, logo paixão, sendo o tormento
ainda utilizado como constrangimento a me demover da frieza que te dedico), eu
teu desalento, desespero, fio tecido em meu redor à maneira de teia». In
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas
Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN
978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT