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O
Vinho
«(…) Estremece; pousa o copo que ele torna a
encher e avidamente, inclinando o
pescoço flexível, bebe. Deixa o vinho inundar-lhe a boca para logo escorrer na
garganta, quente. O homem olha-lhe o peito a descoberto, a pele firme do peito
no fato de um amarelo quase branco e os vincos sob os olhos, na palidez
acentuada pelo crepúsculo lívido.
O
Encontro
Sem se saber vigiada a mulher aguarda. Olha o
relógio, a porta, encosta-se no sofá, olha as pernas sem meias, a porta, o
cigarro, as pernas, o relógio e outra vez a porta, a porta da rua que vê
através da porta entreaberta da sala. Leva o cigarro à boca e deixa deslizar o
fumo pela garganta. Levanta-se depressa, apaga o cigarro e ainda inclinada
sobre a mesa escuta o ruído brando da tarde. Sem se saber vigiada espera. Passa
as mãos pelo cabelo antes de as pousar silenciosas no puxador cromado da porta
da rua. A boca treme-lhe ligeiramente. Atrás de si as persianas estão corridas
mas não até abaixo e na varanda o sol projecta uma sombra debruçada. Mas a
mulher entreabre a porta, sem se saber vigiada entreabre a boca e inclina a
cabeça de encontro à pressão quente das mãos que ele estende para lhe prender
os cabelos e geme de olhos muito fixos nos seus. Esquecem-se de falar e sem se
saber vigiada a mulher entreabre suavemente a blusa. O calor demora-se na
varanda, alastrando-se de silêncio e alastrando a sombra, caindo como o peso de
um ferro sobre o mármore do chão e do
parapeito. A mulher abandona-se e geme agora alto com gozo e alegria. Ergue as
mãos para lhe acariciar a cara e ri: acariciam-se insatisfeitos. Beijam-se.
Riem. Mas logo ficam sérios; subitamente sérios. A mulher, com um medo terrível
nos olhos, aperta-lhe os pulsos e deixa cair a cabeça no seu ombro. Evita as
lágrimas e já nem forças tem para o beijar na boca. Acendem os cigarros e ela
deixa o fumo escapar-se por entre os lábios enquanto ele o engole e lhe olha os
seios na blusa desabotoada. Então tira a blusa e ficam-se assim sem se olharem
nem se tocarem sentados no sofá ao lado um do outro enquanto na varanda a
sombra se crispa, pesada, endurecida. Sem se saber vigiada a mulher deixa as
lágrimas finalmente correrem depressa sobre os dedos.
A
Sede
Não era bem saudade, mas antes uma ânsia ou uma
sede, mesmo uma espécie de ferida, de memória sempre dolorosa como uma ferida.
Quase não lhe sentia a mão no ombro. Porém, ela estava lá, magra, comprida,
exacta; como uma memória, e como a memória: presente, decisiva, a fazer-lhe
recordar, conduzindo-a a um passado onde essa mesma mão a conduzira assim,
magra, comprida, mas sobre o seu ombro: intensa, dura, pesada, quase dolorosa
na pressa de lhe tocar a carne onde enterrava as unhas numa raiva sequiosa.
Tremia de frio debaixo do casaco, um frio que a fazia fechar os olhos e seguir
transida numa pressa de chegar a casa para se deitar enrolada, toda encolhida,
como se estivesse só, tão só como se sentia nesse momento apenas com a memória
e aquela mão no ombro, gelada, imóvel, também ela apenas uma recordação, uma
fotografia apenas, um pormenor, um instantâneo: a mão. Repara como tudo se
modificou: este silêncio entre nós e nós quase tranquilos neste silêncio..., o
ruído dos saltos largos no passeio era pesado, as pernas vergavam-se-lhe e a
cada passo era como se fosse tropeçar
ou ajoelhar sem forças, sem vontade». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o
Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN
978-972-100-090-2.
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