Cortesia da gradiva
Prólogo
«Há trinta anos, com ocasião numa iniciativa rasgada e desportiva de Fernando A. Ferrão, comecei a escrever a História da Cultura Portuguesa, que ficou interrompida quando tive de ir buscar o ganha-pão em França. A obra foi planeada como uma extensão aos temas da cultura dos métodos da história económico-social. Mas no decurso da obra fui obrigado, pela própria matéria, a desviar-me desses de métodos e da doutrina que lhes está subjacente, em última analise, a doutrina marxista das supra-estruturas. Como é possível estabelecer o nexo necessário entre a economia portuguesa do século XVI e, por exemplo, Camões? E que explicação socioeconómica há para o facto de Fernando Pessoa se ter manifestado no primeiro terço do século XX em Portugal?
A história socioeconómica, aquela a que Braudel chamou, e não por acaso certamente, a “história da civilização material”, é a história de um certo encadeamento de comportamentos, técnicas e instituições que permitem à espécie humana sobreviver e afirmar-se na biosfera. É a história da civilização no que ela tem de automático, habitual e colectivo. Presume-se que esse desenvolvimento se faz em fases sucessivas, cada uma delas das quais é preparada pela anterior. Mas a história da cultura ocupa-se de acontecimentos espirituais, que não têm entre si, nem com o nível socioeconómico, um nexo necessário.
A história da civilização material ocupa-se de hábitos, de rotinas, de automatismos que se vão engendrando uns aos outros passo a passo, e que em cada sistema se tornam leis obrigatórias. O historiador da civilização, permita-se a comparação, faz a história dos instrumentos: o historiador da cultura, a história das criações musicais. Para dar um exemplo, o homem inventou o mercado, e este desenvolveu-se segundo leis automáticas de que ele se serve para fins que não são o mesmo mercado e inclusive para combater o seu automatismo, que se vira contra o próprio homem. O desenvolvimento das cidades mercantis italianas nos séculos XIII e XIV pertence ao nível civilizacional, mas os grandes movimentos espirituais que nessa civilização se produzem, como o franciscanismo (que não deve confundir-se com a Ordem Franciscana), ou a pintura de Giotto, que não teve precedentes, só se podem entender quando os considerarmos no seu próprio nível.
[…]
Cortesia de citi
Génese da Nação Portuguesa
O Espaço
O Douro e o Tejo nascem ambos num grande sistema de montanhas ao fundo do qual, do lado de lá, corre o Ebro (lat. ‘Iberus’), que deu o nome à Península. O Ebro desagua, a oriente, no Mediterrâneo, mar populoso, onde desde tempos antiquíssimos se cruzavam os caminhos de navegadores, fenícios, gregos, romanos, bizantinos. Os seus litorais estavam semeados de portos, o seu nome significa: o meio entre as terras.
Em direcção oposta, correndo um ao norte, outro a sul do sistema montanhoso central, o Douro e o Tejo vêm desembocar num mar silencioso, sem outra margem conhecida antes do século XV, um mar só visitado por gaivotas, longo tempo ignorado dos navegadores, salvo os que faziam cabotagem.
O litoral ocidental da Península Ibérica era verdadeiramente o fim do mundo, o ‘finis terrae’, nome que os Romanos deram a um cabo da Galiza, mas também podiam ter dado ao cabo da Roca ou ao de S. Vicente. Colocada entre os Pirinéus e a costa africana, a Espanha estava exposta às invasões do norte e do sul. Sem falar de povos pré-históricos, de um lado da Europa vieram os Celtas, os Romanos, os Suevos e os Visigodos, do outro os Fenícios, os Cartagineses e os Árabes.
Do lado do Mediterrâneo, o sistema montanhoso chamado Ibérico desenha com os Pirinéus um grande triângulo percorrido pelo Ebro. Do lado atlântico aparece um outro triângulo, cujos lados são o litoral norte ou cantábrico, o litoral oeste, e por terra, uma recta imaginária que fosse de Lisboa até à fronteira das Astúrias com o País Basco; são estes os limites dos vários sistemas de cordilheiras que desde os montes Cantábricos se vão sucedendo até ao vale do Tejo: o Maciço Galaico, os montes Leoneses, e o prolongamento em direcção ao mar do sistema central da Meseta, que é a serra da Estrela e adjacências.
Cortesia de auladeliteraturaportuguesa
Entre estes dois triângulos estende-se o grande planalto suspenso, como duas grandes abas, de um lado e outro sistema montanhoso central (Guadarrama, Gredos, etc.) e que é limitado ao sul pela serra Morena. É a Meseta Central, onde se situa o centro geométrico da Península. Nas duas abas da Meseta estão as duas Castelas. Para além da serra Morena está a Andaluzia com os seus pomares. A leste, com o rico vale do Ebro e os portos activos sobre o Mediterrâneo, ficam o Aragão e a Catalunha. Nas serranias rochosas do Noroeste, com as suas praias desertas, estão a Cantábria e a Galiza, onde nasceu Portugal.
A Meseta castelhana, amuralhada nos seus três lados, sob um céu ardente, estava destinada a dominar ou a parecer. O Noroeste ficava isolado, país de montanheses, com uma franja de pescadores, condenados a um duro trabalho numa terra ingrata, ou à emigração. Quanto à Andaluzia, foi sempre uma tentação para os viandantes do Norte ou do Sul, o Jardim das Hespérides.
Na zona oeste, o litoral oferecia um trânsito fácil no sopé das serras, ao longo do mar, e isso permitiu que os montanheses do norte do Tejo descessem à planície ao sul deste rio, onde se prolonga a Meseta castelhana, até ao litoral fronteiro à África, continuação da Andaluzia». In António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Teoria e História, Introdução Geral à Cultura Portuguesa, Herdeiros de António José Saraiva, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996.
Cortesia de Gradiva/JDACT