«(…) Explicou: - A vela também não tem nada a ver com a função, mas dá
uma outra claridade ao aposento. Não faz, portanto, parte do feitiço... Ao
contrário do que dizem os vossos padrecas, as bruxas não gostam de trevas nem de
chamas que queimem, só de luzes que alumiem... A bruxa voltou a arregaçar as
saias e tirou da bolsa oculta um saquinho de cetim e deste umas ervas de aspecto
amarelado e ainda castanhos, pequenos, galhos de árvore enigmática. Tomou-os
nas mãos e disse umas palavras ininteligíveis, assim a modo que quase parecia benzê-los.
Passou depois os galhos e as ervas para as mãos do rei, que estava muito compenetrado
da função, e ordenou-lhe que os atirasse para dentro da água da bacia. El--Rei
obedeceu e a bruxa inclinou-se para ver o efeito que a ervanária fazia a boiar
e soltou um assobio estridente sobressaltando El-Rei que, debruçado por cima dela,
também espreitava. - Vou ter de fazer algumas perguntas, ó rei. - Lá para fora
- berrou o monarca e Gil, a quem a ordem se dirigia, obedeceu, maldizendo a
espessura enorme da porta da câmara real.
A bruxa baixou a voz e El-Rei viu-lhe uma dança de diabos passar-lhe
pelos olhos que não eram já azuis mas cor de um céu muito embruxado. - Então, que se passa? A maga
declarou: - Não tens mau-olhado anormal numa figura como a tua, que deve
odiar-se por tradição e fazer-se amar por função e esforço... Mas és tu quem
olhas pior, ó rei… Que mau-olhado votas ao pobres dos teus vassalos e até a ti
o deitas, pobre criatura que te enredas no teu feitio perdido... O rei deu de
ombros perante o silêncio de interrogação da bruxa, mas como se este se
prolongasse, viu-se obrigado a esclarecer: - Coisas de rei não se
justificam; fazem-se.
- Os ovos da galinha são para
comer, o que não significa que não possam apodrecer. Entendes, ó rei? - Mas…, começou, calou-se El-Rei. - E sabes o que é um rei? Um rei é,
apenas, um homem. Se não fosses um simples, um mero, um desgraçado de um homem,
estavas realmente acima de tudo, e não tinhas varizes..., nem cheiravas a porco
cevado como cheiras... - Cuidadinho com a língua, ó bruxa! Irra, modera-te e pergunta..., com tino. Estou moderada, ó rei. E
sempre fui atinadinha… A bruxa fez urna pausa e disparou: - Há quanto tempo não forni… coisa que se
veja? O rei engasgou-se. - Queres
dizer?... - Ah, pois quero. Lí isso quero, ó rei. Há quanto tempo não te pões em uma?...
- A última em que me pus, ó
bruxa, foi a rainha que já faleceu vai para... E isso foi muito antes dela morrer.
Até emprenhou da dita uma de que te falo... Enquanto o rei cismava, a bruxa
tornou a agitar a água da bacia, desta vez com um raminho de salgueiro. Franzia
o sobrolho... - Uma coisa é certa: não podes, nunca mais, pôr-te nas pu…, ó rei.
Se te queres curar, só fornica… ordenada, em forma de lei, bem vista por
todos... Casa-te! E mais: a nova rainha tem de desejar o sexo contigo.
Coito forçado é lança em saco de farinha, não conta para a cura e é um
desperdício... - Já tenho aí qualquer coisa em vista disse El--Rei e foi buscar
a uma arca o retrato de pintor de uma princesa cheia de folhos. - Mas,
dizem-me, é tão católica que desdenha sequer pensar em coisas de carne..., como
essas.
- É porque ainda não teve macho
que lhe despertasse as verdades. Se é realmente mulher, já terá escondidinhas as
virtudes, à espera da arte certa que as deixe em labaredas... A boda está para próximo? Deixa,
eu vejo... A bruxa tornou a remexer com o graveto. - Falta mais tempo do que
seria bom. Pelo menos do que seria bom para ti e para as tuas pernas. E neste casar
não vejo coisa que se aproveite... - Criatura aziaga, irra! - Bom, coisas de sorte por vezes mudam, ó rei. Não te
apoquentes... - Entretanto, o que é
que eu faço para além de penar? - Mergulha as pernas em água fresca de
fonte corrente. E à noute..., à noute besunta-te com isto…, a bruxa
estendeu-lhe um frasco retirado dos segredos das saias». In Alexandre Honrado, Os
Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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