domingo, 5 de julho de 2015

A Estória Jogralesca de Afonso Henriques. António J. Saraiva. «… o carácter jogralesco, cantado, desta tradição pode ser comprovado pelo facto de ainda no texto da Quarta Crónica Breve, da Crónica de Vinte Reis e do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro se encontrarem vestígios de versos»

jdact

O que são a Terceira e Quarta Crónicas breves de Santa Cruz
«(…) Em primeiro lugar, as variantes. Sabe-se que os cantares tradicionais, à medida que vão passando de boca em boca, se alteram em vários pormenores, e são estas mudanças precisamente que permitem atestar a sua passagem através das gerações, isto é, a sua tradicionalidade. Verificámos isso no primeiro volume desta obra, ao falarmos do rimanceiro e ao vermos como variam de uma versão para outra os nomes das personagens. É possível reconhecer diversas variantes desta tradição. Uma é aquela que já ficou indicada da Quarta Crónica Breve de Santa Cruz, na qual o herói ajudador de Afonso Henriques é Soeiro Mendes, Mãos de Aguia. Outra é a versão da Crónica de Vinte Reis, em que o mesmo personagem é chamado apenas Soeiro Mendes e, apresentado como amo de Afonso Henriques. A terceira é a versão do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, que coincidente com a Soeiro Mendes, Mãos de Aguia, na qual aparece o nome de Soeiro Mendes, mas sem qualquer outra indicação. A quarta encontra-se numa crónica galega citada por Cristóvão Rodrigues Acenheiro no século XVI, em que se diz Soeiro Mendes, o Bom. Quanto à já citada versão da Terceira Crónica Breve, extracto da Crónica Geral de Espanha de 1344, muito posterior, põe neste lugar de ajudador de Afonso Henriques um outro personagem, Egas Moniz. Estas variantes na designação do ajudador são a nosso ver variantes de uma tradição épica.
Soeiro Mendes, o Bom, da casa da Maia, chamado o mais nobre de todos os portugueses numa notícia redigida no Mosteiro de Santo Tirso em 1101, é uma personagem célebre já nossa conhecida, de uma família aureolada pela tradição épica, segundo vimos. Pertencia à geração do conde Henrique e faleceu nos anos 30 do século XII; com o decorrer do tempo a sua memória esvaneceu-se. Daí que os jograis, numa versão, tenham posto em seu lugar um seu parente mais recente, de alcunha Mãos de Águia, também chamado o Facha, falecido em 1176, segundo a sua lápide em Santo Tirso. Por fim, na memória dos jograis, o lugar de Soeiro Mendes foi usurpado por Egas Moniz devido certamente ao valimento desta família, que aliás se uniu com a de Soeiro Mendes. O neto deste era cunhado, por sua mulher, do célebre Lourenço Viegas, o Espadeiro, filho de Egas Moniz e um dos principais cavaleiros de Afonso Henriques e de Sancho I. Assim vai variando a tradição não escrita, ou seja, jogralesca.
Em segundo lugar, o carácter jogralesco, cantado, desta tradição pode ser comprovado pelo facto de ainda no texto da Quarta Crónica Breve, da Crónica de Vinte Reis e do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro se encontrarem vestígios de versos. Mas disto só poderemos falar fundamentalmente quando tivermos dado alguns exemplos textuais. As tradições jogralescas estão mais ou menos próximas das personagens e dos acontecimentos históricos, como já vimos, e conforme essa distância deformam mais ou menos num sentido maravilhoso os heróis e os seus feitos. A distância tem o efeito de uma lente transfiguradora. Ora a simples leitura do nosso resumo mostra que o maravilhoso falta completamente na tradição de Afonso Henriques, e que os seus protagonistas conservam a dimensão humana que foi a dos modelos que os inspiraram. Se há deformação ela está na ordem e no encadeamento dos acontecimentos, na sua organização em torno de uma acção central, numa economia literária, própria de um artista que queria dar estrutura orgânica à sua matéria diegética, mas que acreditava na realidade dessa matéria. É uma deformação própria da arte de contar, que deixa intactas as coisas contadas, mas as relaciona para lhes dar um sentido. Isto leva-nos a concluir que o jogral compôs o seu relato numa época em que Afonso Henriques, embora considerado como um herói colectivo, não tinha ainda sido transfigurado nem perdido as dimensões humanas, ou sequer familiares. E por outro lado o relato contém notícias de acontecimentos que hoje conhecemos por documentos ou por conjecturas fundadas nos mesmos documentos ou nas crónicas latinas da época». In António José Saraiva, A Cultura de Portugal, Teoria e História, Gradiva, Lisboa, 1991, 2007, ISBN 978-972-662-190-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT