Os homens de Trancoso
«(…) Facto é que, ao fim de várias horas de combates, a vitória acabaria
por sorrir às forças comandadas por Gonçalo Vasques Coutinho que, para além
de terem sofrido um número, tudo o indica, pouco significativo de baixas,
conseguiram ainda recuperar todo o saque que era transportado no trem de apoio
castelhano e libertar os inúmeros prisioneiros que eram levados para cativeiro.
Os motivos para este desfecho não são fáceis de encontrar, mas é provável que a
eficácia da liderança de Gonçalo V. Coutinho tenha sido
decisiva para manter coesas as linhas e, assim, suportar o embate com as forças
inimigas, cuja cadeia de comando pode não ter funcionado tão bem. Mas há um
outro argumento que parece ter jogado um papel importante no desfecho da
batalha: o vento. De facto, Ayala sublinha os problemas sentidos pelos
combatentes castelhanos devido à poeira levantada pelo vento que soprava na sua
direcção e que, segundo o cronista, lhes terá dificultado a visão. Parece,
pois, de admitir que esse pode ter sido um factor que Gonçalo Coutinho e os
outros capitães tiveram deliberadamente em linha de conta quando procederam à
escolha da melhor posição para defrontar os homens de Castañeda. Como sintetiza
João Gouveia Monteiro, o desfecho da Batalha de Trancoso vinha confirmar,
cerca de um ano depois de Atoleiros, que os exércitos castelhanos não eram
invencíveis, pelo que o triunfo das forças comandadas pelo Coutinho teve ainda o
efeito de animar ainda mais os que tinham apostado na causa de João I. Além disso,
a batalha servira ainda para desmoralizar consideravelmente o adversário e, depois
das avultadas baixas sofridas durante o cerco de Lisboa, para o privar de mais
alguns dos seus principais comandantes militares. Mas acima de tudo, o resultado
do prélio vinha anular a ofensiva liderada por Pedro Tenório, que acabaria por não
se concretizar em resultado das baixas sofridas na Veiga de Trancoso, obrigando
Juan I a alterar os seus planos, ou seja a mudar a estratégia e a rota de invasão
das planícies das Alentejo para a estrada
da Beira.
Com efeito, pouco mais
de um mês depois, a hoste régia castelhana cruza, então, a fronteira, junto a Almeida,
passa nas imediações de Trancoso, onde lança fogo à Ermida de São Marcos, símbolo
da derrota averbada semanas antes por Juan Rodriguez Castañeda. Daí progride para
sudoeste em direcção a Coimbra e a Leiria, até ao planalto de São Jorge, onde chega
no dia 14 de Agosto de 1385. Porém, Gonçalo não participará na Batalha de
Aljubarrota, segundo Luís Filipe Oliveira, em virtude de um posicionamento algo
expectante, ditado pela preocupação em não se comprometer demasiado num enfrentamento
que, todos o sabiam, poderia ser decisivo. E tratou-se de uma ausência feita ao
arrepio das ordens do rei, que o convocara para que se juntasse à hoste régia,
aliás tal como a Vasco Martins, Gil Vasques e Martim Vasques Cunha, João Fernandes
Pacheco, Egas Coelho, os outros capitães vitoriosos da Batalha de Trancoso, mas
dos quais só os dois últimos conseguem chegar a São Jorge ainda a tempo de integrar
o exército português. Contudo, a sua ausência, aliás, tal como a dos Cunha, não
terá, em nada, beliscado a relação com o rei.
O cerco a Chaves e a ofensiva de
1386
Em Outubro de 1385, quando se encontrava no Porto, João
I volta a convocar a hoste régia, decidido a avançar de imediato contra as praças-fortes
transmontanas que ainda mantinham voz por Castela, aproveitando os efeitos da vitória
alcançada, meses antes, no planalto de São Jorge. Mas perante a relutância demonstrada
por muitos quanto à participação numa campanha que iria decorrer em pleno Inverno,
o rei viu-se forçado a ameaçar com o confisco de bens todos quantos, apesar de terem
já recebido remuneração, não acorressem ao seu apelo. Gonçalo terá sido um destes,
já que parece ter demorado a acatar a ordem do monarca que, chegado a Vila Real,
em finais de Novembro, voltará a convocá-lo, bem como aos irmãos Martim Vasques
e Gil Vasques Cunha, para que se juntasse à hoste.
Será, pois, para tentar apaziguar a relutância que demonstrara em integrar
a hoste régia que João I beneficia Gonçalo com um novo e impressionante
conjunto de doações. Assim, ao longo do mês de Dezembro de 1385, entrega-lhe as terras de Numão, Horta, Vila Nova de Foz Côa,
Cedovim; Tavares, Cinfães, Parada, Meã; Viseu e a barca da Régua, para além de uma
nova carta de doação de todos os bens móveis e de raiz que haviam pertencido a Martim
Gonçalves Ataíde. Terá sido, portanto, por essa altura que os contingentes de Gonçalo
Vasques Coutinho, e provavelmente também os de Martim Vasques Cunha, finalmente,
se reuniram à hoste estacionada em Vila Real e pronta para dar início ao cerco à
cidade de Chaves. Perante a resistência demonstrada pela guarnição comandada por
Martim Goncalves Ataíde, cunhado de Gonçalo Vasques, João I manda erguer
uma grande torre de assalto para impedir o acesso ao rio Tâmega. Ao privar os sitiados
de água potável o rei esperara conseguir acelerar a sua rendição. Mas nem assim
a resistência esmoreceu, com o cerco a arrastar-se muito para além do que inicialmente
se previa e com inúmeros episódios reveladores da tenacidade da guarnição flaviense
que, apesar da sede, não dava quaisquer sinais de enfraquecimento. Uma das poucas
pessoas que, no interior da cidade, tinha as suas necessidades mitigadas era dona
Mécia V. Coutinho, mulher do alcaide e irmã de Gonçalo Vasques, a quem o
rei mandava entregar diariamente, por amor
de seu irmão, como assegura Fernão Lopes, um cântaro de água». In
Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.
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