«Na
salinha de estar, enquanto a mãe na cozinha prepara a ceia, e que suculentas
sopas sabe fazer!, o pai, actor teatral, cançonetista, declamador,
prestidigitador ilusionista, transformista, dedica-se a compor uma nova rábula
em verso. Tamborila as sílabas em redondilha maior e a busca das rimas,
pacientemente respigadas no Dicionário de Rimas de Costa Lima; para uso
de Portugueses e Brasileiros, com uma poética histórica Portuguesa, por Theofilo
Braga, 2.ª edição, revista e muito ampliada, Editores Santos e Vieira, Empresa
Litteraria Fluminense, Rua da Retrosaria 125, Lisboa, (s. d.), torce-lhe e
força-lhe o pensamento arrastado pelas palavras: céu, aléu, arpéu, bailéu, escarcéu, lebréu, mausoléu, troféu...
Não há deusas, ninfas, tágides que assistam, que resistam, que atendam qualquer
espécie de invocação!...
Brilham
estrelas do céu
no
azul do teu olhar
para
que da Aurora o véu
as
não consiga apagar.
Do
firmamento o bailéu
não
o deixa a aurora bailar,
como
seja mausoléu
do
brilho do teu olhar.
Bailam
estrelas do céu
nas
chispas do teu olhar
lançam
ganchos, são arpéu
que
nos está a arpoar.
Ó
Maria traz cá a escada,
ó
Manel o escadote.
A
rima vai apagada,
alumia-a
com o archote.
Descontente,
o artista põe de lado papel e livro, e dispõe-se a ouvir as filhas, que, noutra
mesa, colam num álbum o folhetim do jornal. Cinema, filhas? Olhe aqui, papá!, e
a mais velha, Raquel se chama, galantes dezoito anos, pianista, cabelo cortado à garçonne ou, como também se
diz, à Joãozinho, mostra o álbum
de capas cartonadas, sobre fundo negro a prata de esvoaçantes laços e volutas
arte-nova, o rectângulo, com pontinhos prateados a toda a volta, em que figuram
as letras garrafais do título: Ravengar
O
papá deixa-nos, todos os dias, recortar o folhetim do vespertino A Noite,
conforme vai sendo publicado. Já, colámos o número quatro. Que história!...
Veja, paizinho!, e Raquel lê o cabeçalho: …grande folhetim-cinema que está
sendo exibido nos cinemas Pathé e Idéal!
Deixa-nos
ir? Deixe! Deixe!, secunda a mais nova, é sua graça Fernanda, quinze anitos
muito ternos, o sorriso é mel do jataí. Mais conservadora que a irmã, usa
cabeleira longa que lhe cai pelas costas, negra como asa da graúna. Quando sai de
casa, enrola-a no cocuruto ou sobre a nuca, presa com travessa de tartaruga. Habituadas
a ver o pai a actuar, conhecem a caixa do teatro por dentro, com todos os seus
truques, e estão interessadas em confrontar a representação teatral com a
expressão do cinema. Razoavelmente cultas, lêem muito e discutem acima das
moças da sua idade. Raquel, em contradição com o penteado, tem pendor sério,
quase triste. Fernanda, ao contrário, de crítica faceta, gosta de rir. Sabeis
bem que não aprecio cinema. Essas malditas fitas estão a acabar com o teatro.
Não quereis antes ir ao teatro? Aqui no Rio de Janeiro há óptimos espectáculos.
Que
tal, hem? Cinema! Pf! Luz e sombra, lanterna mágica, feitiçaria de
charlatães!... Oh, papá! E o teatro não tem as suas feitiçarias? As gambiarras
e o brilhar ou velar de luzes para fingir o dia e a noite? Efeitos de cenários,
de trovões e relâmpagos, chuva e vento, arrancar de automóveis, tropel de
cavalos, rebate de sinos, deus-ex-machina
e tantos outros faz-de-conta? E até alçapões?» In Fernando Campos, Ravengar, Alfaguara,
Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-989-672-131-2.
Cortesia
de Alfaguara/JDACT