quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ravengar. Fernando Campos. «1905. Na viagem pelo Atlântico em busca de assunto para novo romance, Price naufraga e desaparece na escuridão da noite. Sobreviventes apenas dois marinheiros…»

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«Na salinha de estar, enquanto a mãe na cozinha prepara a ceia, e que suculentas sopas sabe fazer!, o pai, actor teatral, cançonetista, declamador, prestidigitador ilusionista, transformista, dedica-se a compor uma nova rábula em verso. Tamborila as sílabas em redondilha maior e a busca das rimas, pacientemente respigadas no Dicionário de Rimas de Costa Lima; para uso de Portugueses e Brasileiros, com uma poética histórica Portuguesa, por Theofilo Braga, 2.ª edição, revista e muito ampliada, Editores Santos e Vieira, Empresa Litteraria Fluminense, Rua da Retrosaria 125, Lisboa, (s. d.), torce-lhe e força-lhe o pensamento arrastado pelas palavras: céu, aléu, arpéu, bailéu, escarcéu, lebréu, mausoléu, troféu... Não há deusas, ninfas, tágides que assistam, que resistam, que atendam qualquer espécie de invocação!...

Brilham estrelas do céu
no azul do teu olhar
para que da Aurora o véu
as não consiga apagar.

Do firmamento o bailéu
não o deixa a aurora bailar,
como seja mausoléu
do brilho do teu olhar.

Bailam estrelas do céu
nas chispas do teu olhar
lançam ganchos, são arpéu
que nos está a arpoar.

Ó Maria traz cá a escada,
ó Manel o escadote.
A rima vai apagada,
alumia-a com o archote.

Descontente, o artista põe de lado papel e livro, e dispõe-se a ouvir as filhas, que, noutra mesa, colam num álbum o folhetim do jornal. Cinema, filhas? Olhe aqui, papá!, e a mais velha, Raquel se chama, galantes dezoito anos, pianista, cabelo cortado à garçonne ou, como também se diz, à Joãozinho, mostra o álbum de capas cartonadas, sobre fundo negro a prata de esvoaçantes laços e volutas arte-nova, o rectângulo, com pontinhos prateados a toda a volta, em que figuram as letras garrafais do título: Ravengar
O papá deixa-nos, todos os dias, recortar o folhetim do vespertino A Noite, conforme vai sendo publicado. Já, colámos o número quatro. Que história!... Veja, paizinho!, e Raquel lê o cabeçalho: …grande folhetim-cinema que está sendo exibido nos cinemas Pathé e Idéal!
Deixa-nos ir? Deixe! Deixe!, secunda a mais nova, é sua graça Fernanda, quinze anitos muito ternos, o sorriso é mel do jataí. Mais conservadora que a irmã, usa cabeleira longa que lhe cai pelas costas, negra como asa da graúna. Quando sai de casa, enrola-a no cocuruto ou sobre a nuca, presa com travessa de tartaruga. Habituadas a ver o pai a actuar, conhecem a caixa do teatro por dentro, com todos os seus truques, e estão interessadas em confrontar a representação teatral com a expressão do cinema. Razoavelmente cultas, lêem muito e discutem acima das moças da sua idade. Raquel, em contradição com o penteado, tem pendor sério, quase triste. Fernanda, ao contrário, de crítica faceta, gosta de rir. Sabeis bem que não aprecio cinema. Essas malditas fitas estão a acabar com o teatro. Não quereis antes ir ao teatro? Aqui no Rio de Janeiro há óptimos espectáculos.
Que tal, hem? Cinema! Pf! Luz e sombra, lanterna mágica, feitiçaria de charlatães!... Oh, papá! E o teatro não tem as suas feitiçarias? As gambiarras e o brilhar ou velar de luzes para fingir o dia e a noite? Efeitos de cenários, de trovões e relâmpagos, chuva e vento, arrancar de automóveis, tropel de cavalos, rebate de sinos, deus-ex-machina e tantos outros faz-de-conta? E até alçapões?» In Fernando Campos, Ravengar, Alfaguara, Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-989-672-131-2.

Cortesia de Alfaguara/JDACT