[…]
Procura
da poesia
«Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se são obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e
consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se
do limbo.
Não colhas no chão o poema que se
perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma
definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais para perto e contempla
as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face
neutra
e pergunta, sem interesse pela
resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda húmidas e impregnadas de
sono,
rolam
num rio difícil e se transformam em desprezo».
A
Flor e a Náusea
«Preso
à minha classe e a algumas roupas,
vou de
branco pela rua cinzenta.
Melancolias,
mercadorias espreitam.me.
Devo
seguir até o enjôo?
Posso,
sem armas, revoltar-me?
Os olhos
sujos no relógio da torre:
não,
o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo
é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo
pobre, o poeta pobre
se fundem
no mesmo impasse.
Em vão
me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a
pele das palavras há cifras e códigos.
O sol
consola os doentes mas não os renova.
As
coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar
esse tédio sobre a cidade.
Quarenta
anos e nenhum problema
resolvido,
sequer colocado.
Nenhuma
carta escrita nem recebida.
Todos
os homens voltam para casa.
Estão
menos livres mas levam jornais
e soletram
o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes
da terra, como perdoá-los?
Tomei
parte em muitos, outros escondi.
Alguns
achei belos, foram publicados.
Crimes
suraves, que ajudam a viver.
Ração
diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes
padeiros do mal.
Os ferozes
leiteiros do mal.
Pôr fogo
em tudo, inclusive em mim.
Ao menino
de 1918 chamavam anarquista.
Porém
o meu ódio é o melhor de mim.
Com
ele me salvo
e dou
a poucos uma esperança mínima.
Uma flor
nasceu na rua!
Passem
de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor
ainda desbotada
ilude
a polícia, rompe o asfalto.
Façam
completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto
que uma flor nasceu.
Sua cor
não se percebe.
Suas
pétalas não se abrem.
Seu
nome não está nos livros.
É feia.
Mas é realmente uma flor.
Sento-me
no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e passo
lentamente a mão nessa forma insegura.
Do lado
das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos
pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia.
Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio»
Poemas
de Carlos Drummond de Andrade, in ‘A
Rosa do Povo’
In Carlos
Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, Livraria José Olympo Editora, São Paulo,
1945.
Cortesia
de LJoséOlympio/JDACT