terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Botequim da Poesia. Alberto Caeiro. «Pelo Tejo vai-se para o Mundo. Para além do Tejo há a América e a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia»

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O Guardador de rebanhos
[…]
«O luar quando bate na relva
não sei que coisa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
andava à noite nas estradas
socorrendo as crianças maltratadas…

Se eu já não posso crer que isso é verdade
para que bate o luar na relva?

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grandes navios
e navega nele ainda,
para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
a memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
e o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
e para onde ele vai
e donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
é mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
e a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Se eu pudesse trincar a terra toda
e sentir-lhe um paladar,
seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
para se poder ser natural…

Nem tudo é dias de sol,
e a chuva, quando falta muito, pede-se
por isso tomo a infelicidade com a felicidade
naturalmente como quem não estranha
que haja montanhas e planícies
e que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
na felicidade ou na infelicidade
sentir como quem olha,
pensar como quem anda,
e quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre
e que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...»
[…]
Parte do Poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), in ‘Poesias
ISBN 978-972-617-195-9


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