«(…) Mas quando, entre assomos de riso, estão prestes a esconder-se na sombra
da latada de rosas púrpura, chega-lhes um revolvido e surdo clamor subido das
entranhas da terra, ao mesmo tempo que o chão lhes foge debaixo dos pés,
desequilibrando-as. Assustadas, franzem as pálpebras a verem a luz translúcida
e límpida da manhã tremeluzir, dançar frente aos seus olhos claros, paralisadas num demorado
espasmo de medo, para de imediato se agarrarem uma à outra apavoradas ante as
convulsões da terra e o intenso bramido que se levanta à mistura com o
desabalado tocar de sinos, com os gritos, imprecações e preces, gemidos
dilacerados e súplicas, chamamentos em pânico a subirem de tom à sua volta,
acabando por se juntar num único fragor desmedido, que trepa já pelas abaladas
colinas de Lisboa, onde se sucedem as ruínas. De mais longe chega já o brado
que sai de entre os escombros, por onde uma imensa onda galgará mais tarde,
maremoto a arrebanhar os restos do pouco que ainda restar.
Sempre que a terra parece
imobilizar-se, as duas correm esperançadas, sem cuidar de evitar as rachas
abertas no solo de onde brota uma lama fervente, imunda e fétida. Logo, porém,
os abalos regressam, a derrubar, a acabar com o que ficara suspenso, e no seu
descuido elas tombam, erguem-se, magoam-se. Reparando nos soluços emudecidos de
Maria, Leonor toma-a pelos ombros frágeis a empurrá-la, a puxá-la em direcção a
casa que julga antever à sua frente percorrida por um intenso arrepio, que a
leva a tremer de alto a baixo parecendo contorcer-se e arquear-se, mas então é
o mirante do lado norte da quinta que de súbito desaba numa espécie de suspiro
reprimido, enquanto nas grossas paredes das várias fachadas do edifício
serpenteiam veios que logo se tornam frinchas enegrecidas, num grande fragor de
alvenaria a fender-se, a esboroar-se.
Na tentativa de escapar aos blocos de
pedra, às traves que estalam e caem, às telhas que na queda se desfazem a seus
pés, elas desviam-se e recuam aturdidas, afastam-se o melhor que podem tolhidas
por um terror visceral, a fingirem ignorar a vertigem e a náusea que as acomete,
cambaleando entre o pátio e os jardins que se encheram com a família, os
criados, com os vizinhos, todos aqueles que ali procuram refúgio vindos de
maiores perigos, do inferno em que as ruas da cidade se tornaram.
De mãos dadas, encolhidas uma na outra,
Maria e Leonor não conseguem evitar os picos dos cardos, os cacos dos vidros,
lutam para conseguir respirar o ar pesado e grosso; param um pouco a tentarem
engolir a saliva encorpada e áspera com travo a salitre e amargor. Sabor do ar
entretecido pelas nuvens de fumo, de cinza e poeira a fazê-las chorar à medida
que avançam, pernas e braços lacerados. Passo incerto na teima de se firmar
naquela espécie de ondulação obscura, vestidos esfarrapados pelos espinhos de
roseiras improváveis. A magoarem-se nas árvores arrancadas pelas raízes que
ficam como farpas viradas para o alto, a ferirem-se nas ferrarias espalhadas a
esmo, a arranharem-se nas silvas que parecem brotar de súbito por entre as
fendas que o solo abre, escaldando debaixo dos pés.
Caracóis desfeitos e colados às faces
humedecidas pelo suor, pelo ranho e pelas lágrimas que correm sem que dêem por
isso, as meninas tentam agarrar-se onde podem, em risco de serem derrubadas por
quem corre enlouquecido a tropeçar, a vacilar, a oscilar antes de cair de
joelhos, mãos postas numa súplica muda ao Altíssimo. Vamos morrer, soluça Maria
num fio de queixa inaudível que leva Leonor, num derradeiro esforço, a tentar
distinguir por entre o caos que as rodeia um meio de as pôr no trilho de casa.
E é mais por instinto do que por discernimento que se defende e à irmã dos
cavalos fugidos, a correrem às cegas relinchando, espezinhando tudo à sua
passagem, por entre o negrume que se abatera sobre a manhã ainda há pouco
transparente e radiosa». In Maria Teresa Horta, As
Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
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