Primeira
Carta III
A Paz
(…) Sei como és
daninha, mulher retomada do rio que esforças por calar nas veias, maligna. Na
seda das nádegas, no odor abrasado das axilas. Terra que a haustos respiro e
formo com teu esperma meu sémen; tua amante-esposa não deixaste perdida nem
lograda; eis como me entrego e me ofereço, me conduzo e te ensino até o jeito
mais breve ou demorado para melhor gozo. De pé agora te retomo, te cruzo, te
possuo; minhas secreções já espessas, à mistura com as tuas, inundam-me as
entranhas tão estéreis, herméticas, adormecidas.
Mariana deixa que os
dedos retornem da vagina e procurem mais alto o fim do espasmo que lhe trepa de
manso pelo corpo. A boca que a suga, a galga, é como um poço no qual se afoga
consentida, ela mesmo a empurrar-se, enlouquecida, veloz. Devagar meu amor,
devagar o nosso orgasmo que contornas ou eu contorno com a língua. Devagar te
perco de súbito, te esqueço, não sendo tudo mais que uma enorme vaga de
vertigem. E a noite devora, vigilante, o quarto onde Mariana está estendida. O
suor acamado, colado à pele lisa, os dedos esquecidos no clitóris, entorpecido,
dormente. A paz voltou-lhe ao corpo distendido, todavia, como sempre, pronto a
reacender-se, caso queira, com o corpo, Mariana se comprazer ainda. In 21/3/71
Segunda Carta III
Estamos alegres, mas de forma
alguma. Não sei quem excluímos, quem matámos. Mas sinto essa alegria, sem forma
e sem vitral, de se haver desaconchegado um mito, desflorado uma lei, de se ter
morto um amor de quem nos diz amar necessariamente. Se fôssemos nós existindo
definidas, ou definindo os nossos limites?, por quem nos diz amar, como
diríamos então o absurdo da morte? Definidos os nossos limites, interpus, e
creio que sim. Quem nos tolhe o passo são aqueles que nos amam; mas, ainda
mais, definimo-nos para aqueles que nos amam pelos nossos limites de carne e de
pele, de saber e de sentir, o contorno, a forma, é o que nos torna palpáveis e
compreensíveis.
Eu irei, por exemplo, até à ponta
do azul, ou mesmo do anil, mas já não sou eu que gosto ou sei do roxo, aí
começas tu, por exemplo. Assim se dão prendas de aniversário e de amor, de
passar dos anos às coisas e de pessoas a coisas. Já que vingança se exerce noamor
e o amor nos é dado de uso. Bem sabemos, entretanto, que nosso limite é só o
tempo, e que estamos sempre longe de nos definir até à nossa morte. Absurda é
essa ideia de se fazer das pessoas conjuntos fraccionáveis, e se nos dizem todos
que absurda é a morte, como se compraz alguém em nos fixar num presente sem
fim, num último retrato? Vos desfizemos, então, em nosso sustento.
Escalaram-se primeiro as
montanhas, e só agora se tenta o fundo do mar, hesitantemente, e creio que a
lua já nos é mais conhecida que esse fundo dos oceanos. Os homens sempre se
teceram e sonharam no que é forma extrovertida, no que se erige, no que rasga o
espaço. Por isso, dos poços e das profundezas nada sabem, nada nos sabem.
Dizem-te és fluida, e não conhecem a rocha que sustenta o peso do oceano; por
isso é necessário conhecer-lhes a ciência, a prosa e os nomes aceites. Do uso
nos defendemos, e desfizemos então em nossos sustentos, quem nos usa». In
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas
Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN
978-972-204-011-2.
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