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É o asilo inviolável das pessoas perseguidas e o sepulcro dos mortos ilustres.
É a cidade dentro da cidade, o núcleo intelectual e moral do aglomerado, o coração
da actividade pública, a apoteose do pensamento, do saber e da arte. Pela
abundante floração dos seus ornamentos, pela variedade dos temas e das cenas
que a enfeitam, a catedral aparece como urna enciclopédia muito completa e
variada, ora ingénua, ora nobre, sempre viva, de todos os conhecimentos
medievais. Estas esfinges de pedra são assim educadoras, iniciadoras, em
primeiro lugar. Este povo cheio de quimeras, de figuras grotescas, de
figurinhas, de carrancas, de ameaçadoras gárgulas, dragões, vampiros e tarascas,
é o guardião secular do património ancestral. A arte e a ciência, outrora
concentradas nos grandes mosteiros, escapam-se da oficina, acorrem ao edifício,
agarram-se aos campanários, aos pináculos, aos arcobotantes, suspendem-se das
abóbadas, povoam os nichos, transformam os vitrais em pedras preciosas, o bronze
em vibrações sonoras e desdobram-se pelos portais numa alegre revoada de
liberdade e de expressão. Nada mais laico do que o exoterismo deste
ensinamento! Nada mais humano do que esta profusão de imagens originais, vivas,
livres, movimentadas, pitorescas, por vezes desordenadas, sempre interessantes;
nada mais impressionante do que estes múltiplos testemunhos da existência
quotidiana do gosto, do ideal, dos instintos dos nossos pais; nada mais
cativante, sobretudo, que o simbolismo dos velhos alquimistas habilmente
traduzido pelos modestos estatuários medievais.
A
este respeito, Notre-Dame de Paris, igreja filosofal, é sem dúvida um dos
exemplares mais perfeitos e, como disse Victor Hugo, a síntese mais satisfatória da ciência hermética, de que a igreja de
Saint-Jacques-la-Boucherie era um completo hieróglifo. Os alquimistas do
século XIV encontram-se aí, semanalmente, no dia de Saturno, no grande portal
ou no portal de S. Marcelo, ou ainda na pequena Porta Vermelha, toda decorada
de salamandras. Denys Zachaire informa-nos que o hábito se mantinha ainda no
ano de 1539, nos domingos e dias de festa e Noël du Fail diz que o grande encontro de tais académicos era em Notre-Dame
de Paris. Aí, no deslumbramento das ogivas pintadas e douradas, dos cordões
das voltas das abóbadas, dos tímpanos com figuras multicores, cada um expunha o
resultado dos seus trabalhos, desenvolvia a ordem das suas pesquisas.
Emitiam-se probabilidades, discutiam-se possibilidades, estudava-se no próprio local
a alegoria do belo livro e a exegese abstrusa dos misteriosos símbolos não era
a parte menos animada destas reuniões.
Após
Gobineau, Cambriel e tutti quanti,
vamos empreender a piedosa peregrinação, falar às pedras e interrogá-las. Ai de
nós! É já bem tarde. O vandalismo de Soufflot destruiu em grande parte o que, no
século XVI, o assoprador podia admirar. E se a arte deve algum reconhecimento
aos eminentes arquitectos Toussaint, Geffroy Dechaume, Boeswillwald, Viollet-le-Duc
e Lassus, que restauraram a basílica, odiosamente profanada pela Escola, a
Ciência nunca reencontrará o que perdeu. Seja como for, e apesar destas
lamentáveis mutilações, os motivos que subsistem ainda são bastante numerosos
para que se não tenha de lamentar o tempo e o trabalho de uma visita.
Ficaremos, portanto, mais satisfeitos e largamente pagos pelo nosso esforço se
pudermos despertar a curiosidade do leitor, reter a atenção do observador sagaz
e mostrar aos amadores do oculto que não é impossível recuperar o sentido do
arcano dissimulado sob a aparência petrificada do prodigioso engrimanço». In
Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais,
Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge,
1975.
Cortesia
E70/JDACT