Tânger. A miragem e o desastre
«(…) Neste dia, uma quinta-feira, os muçulmanos conduzem então o seu primeiro
ataque em larga escala. Contudo, o infante Henrique opta por não os deixar
aproximar demasiado e, inteligentemente, decide defrontá-los em batalha campal
numa zona relativamente arredada do acampamento. Segundo as informações veiculadas
por Rui Pina, o dispositivo táctico português era composto, como habitualmente,
por uma vanguarda e uma rectaguarda. Enquanto a segunda era apenas capitaneada
pelo infante Henrique, a primeira encontrava-se dividida em duas unidades, uma,
a que o cronista chama ala esquerda,
posicionada do lado do mar e comandada por Álvaro Vaz de Almada e Duarte
Meneses; a que se acrescentava, no seu flanco direito, uma outra de menor
dimensão e liderada pelo marechal e pelo seu filho Gonçalo Coutinho. Segundo o
testemunho das fontes narrativas, terão sido os portugueses a tomar a
iniciativa, conseguindo, logo nos primeiros momentos da peleja, romper as
linhas muçulmanas, cujos efectivos se põem de imediato em fuga perseguidos
pelos cristãos, designadamente pelas forças comandadas por Álvaro Vaz,
entretanto reforçadas pelas restantes unidades. Porém, entusiasmados pela
perspectiva de uma vitória fácil, acabam por levar longe demais a perseguição
afastando-se demasiado da zona do arraial. Este distanciamento, que pode mesmo
ter sido intencionalmente provocado pelo inimigo, foi explorado de forma
inteligente pelas forças da guarnição de Tânger, que lançam uma surtida contra
o arraial, então protegido apenas por um reduzido número de homens. Contudo, apesar
da surpresa e da manifesta superioridade numérica do inimigo, os defensores do
palanque conseguem dar conta do recado e acabam mesmo por obrigar as forças
adversárias a retirar para a cidade, permitindo, assim, o retorno seguro dos
seus camaradas-de-armas, entretanto regressados da perseguição.
E apesar dos riscos resultantes da presença de um número cada vez maior
de contingentes inimigos nos montes em redor da cidade, no dia 5 de Outubro
o infante Henrique arrisca um segundo assalto. Porém, tal como o primeiro,
também este se salda num fracasso, com os muçulmanos, em particular os inúmeros
besteiros granadinos, a conseguirem repelir facilmente todas as ofensivas.
Destas, só a que era liderada por Vasco Fernandes Coutinho terá logrado
aproximar-se das muralhas e encostar a escada de assalto que, no entanto, foi
de imediato incendiada pelos sitiados. Frustrado mais este ataque, no qual,
tudo o indica, Álvaro Vaz não terá participado, permanecendo junto das bocas de
fogo, os portugueses acabam por regressar ao arraial, surpreendentemente, e
para espanto do próprio Rui Pina, apenas com um número reduzido de baixas, que
o cronista contabiliza em apenas sete mortos. Entretanto, os cada vez mais numerosos
reforços muçulmanos começam a revelar-se uma verdadeira ameaça à segurança das
forças portuguesas. De tal forma que, no dia 9 de Outubro, por alturas
do meio-dia, o arraial português é novamente alvo de um poderoso exército
inimigo. Porém, atempadamente avisado do perigo, o infante Henrique, ao contrário
do que fizera no dia 3 de Outubro, ordena a retirada de todos os
efectivos que defendiam a praia, para os concentrar numa zona mais próxima do
palanque. Esta medida levou a que os portugueses perdessem o contacto directo
com a faixa ribeirinha e, consequentemente, com os navios da frota. Mas não era
apenas o arraial principal que estava na iminência de sofrer um ataque. Por
isso mesmo, o comandante teve o bom-senso de enviar alguns reforços para a zona
onde se encontravam as bocas de fogo. Ainda assim, esta medida não foi
suficiente para suster a violenta investida inimiga, pelo que sem conseguirem
aguentar aquela posição, por si só indefensável porquanto muito afastada do arraial
e demasiado próxima da cidade, o marechal e Álvaro Vaz Almada vêem-se forçados
a ordenar a retirada. Esta decisão, se bem que salvasse a maioria dos
combatentes que aí se encontrava, significava o abandono das bocas de fogo,
munições e pólvora, o que trouxe a perda de boa parte da capacidade ofensiva da
hoste portuguesa, agora privada da quase totalidade da sua artilharia». In
Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.
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