sexta-feira, 3 de julho de 2015

Fernando. Senhor de Serpa. Miguel G. Martins. «Não admira, pois, que tivesse sido Sancho II, receoso de uma atitude vingativa por parte do seu ex-chanceler, o verdadeiro mandante, da violenta ofensiva conduzida, em finais de 1236, pelo infante de Serpa»

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Dos primeiros anos aos anos de fogo
«(…) Instalado no seu senhorio, procura então cimentar relacionamentos com os diversos poderes locais e regionais, nomeadamente com o bispo de Évora, Fernando, de quem se faz vassalo e a quem se compromete, em Outubro de 1235, a entregar todos os direitos episcopais que lhe eram devidos, designadamente a terça pontifical das igrejas de Serpa, tanto das já existentes, quanto das que futuramente aí viessem a ser edificadas. Para todos os efeitos, tratava-se do reconhecimento do poder do bispo e da sua supremacia relativamente ao ainda algo frágil poder regional do jovem infante. A mudança para Serpa tem lugar nas vésperas de grandes perturbações e violências no Norte do reino, em Braga, no Porto e em Lamego, por exemplo, e antecede a enorme agitação e mudança nos meios cortesãos e da administração do reino, que levarão, a partir de 1236, a um isolamento cada vez maior do rei. Não admira, pois, que nos anos seguintes Fernando, que não teria ainda 20 anos de idade, se converta num dos principais suportes de Sancho II. E será o próprio monarca que o manipula e empurra para o centro dessas mesmas convulsões colocando-o em rota de colisão com o bispo da Guarda, mestre Vicente.

Uma autêntica caça ao bispo
Aquele prelado havia ascendido à dignidade de chanceler do rei em 1224, depois de uma brilhante carreira eclesiástica que o levou de deão da Sé de Lisboa a canonista e professor na Universidade de Bolonha e, em 1229-1230, ao bispado da Guarda. Será mestre Vicente, durante a sua permanência na chancelaria régia, o responsável por uma profunda reorganização administrativa, no âmbito da qual eleva o cargo que ocupa a uma posição hegemónica, omnipresente e que chega mesmo a eclipsar a figura do rei. Contudo, pouco depois de Janeiro de 1236, naquilo que parece ser um autêntico golpe palaciano, o chanceler é afastado. Com ele tombam também algumas das figuras e famílias nobres mais destacadas no seio da administração do reino. Entre os que são atingidos por esta autêntica purga encontram-se o tio do rei, Rodrigo Sanches, os poderosos Sousas e todos aqueles que, de alguma forma, a eles se encontravam mais ligados. Acossado, humilhado e refugiado na diocese da Guarda, mestre Vicente convertia-se, agora, na perspectiva do monarca, numa figura incómoda, perigosa e ameaçadora, mercê dos seus contactos e capacidade de influência junto do papa. Não admira, pois, que tivesse sido Sancho II, receoso de uma atitude vingativa por parte do seu ex-chanceler, o verdadeiro mandante, da violenta ofensiva conduzida, em finais de 1236, pelo infante de Serpa.
Segundo as queixas do bispo, que se conhecem apenas através do conteúdo das bulas papais emitidas a propósito desses actos, Fernando e os seus homens assaltaram as propriedades do prelado, mas também as dos seus clientes e vassalos, quer no bispado da Guarda, quer no de Lisboa. Num e noutro local, apropriaram-se de bens, destruíram haveres, perseguiram pessoas e praticaram diversos sacrilégios, recorrendo, por vezes, ao auxílio de combatentes muçulmanos recrutados no senhorio de Serpa e nas regiões próximas. Em Santarém, o infante teria ido ainda mais longe ao matar, na presença do próprio mestre Vicente, aparentemente com as próprias mãos e, numa atitude claramente ameaçadora, da qual não mostrou quaisquer sinais de arrependimento, alguns clérigos ligados ao bispo e que ainda exerciam funções na chancelaria régia. Mas seriam estes actos devidos única e exclusivamente à iniciativa de Fernando que, ao que parece, nada teria a ganhar com eles, salvo o que conseguisse roubar e saquear? Tudo indica que não. Pelo menos em alguns meios não existiam quaisquer dúvidas a esse respeito. Com efeito, ao ser informada destes acontecimentos, a Santa Sé reage de imediato e, nos finais de Abril de 1237, envia ao arcebispo de Toledo e ao bispo de Leão instruções para lançar a excomunhão sobre o infante e os seus homens. Porém, ordena igualmente o interdito, a pena eclesiástica que privava os fiéis dos sacramentos, dos ofícios ou mesmo de sepultura religiosa, sobre todo e qualquer local onde o rei e a corte estacionassem, sinal claro de que sabia perfeitamente de onde tinham partido as ordens recebidas por Fernando. Tal como no caso das violências conduzidas contra mestre Vicente, também os abusos cometidos contra a diocese de Lisboa, talvez nos primeiros meses de 1238, parecem ter tido, no mínimo, o beneplácito do rei que, à imagem do que sucedera no ano anterior, terá sido, mais uma vez, o autor moral de todos esses novos desmandos». In Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.

Cortesia Esfera dos Livros/JDACT