A
luta dos sexos
«(…) O
comportamento sexual dos religiosos sempre foi motivo de inquietação para as
entidades superiores ainda que estas não estivessem isentas do mesmo pecado. No
relato de visitação à igreja de S. Miguel de Torres Vedras (1462)
ordena-se aos os vigários, capelães, priores que estejam a par de clérigos
publicamente barregueiros que os proíbam de dizer missa. No caso do amancebado
serem os próprios vigários e piores que assim vivam publicamente, ficavam
encarregados os raçoeiros de não os consentirem, bem como de os obrigar a pagar
multa ao aljube eclesiástico. O tema fazia as delícias da literatura satírica.
No referido El Corbacho, publicado em 1483 os frades e seculares que não respeitavam as mulheres e
eram conhecidos pelos seus feitos de tocar gaita. Por cá, Gil
Vicente, na sequência da Nave dos Loucos de Sebastian Brant, faz aparecer o
frade amantizado no auto da Barca do
Inferno de Gil Vicente, vestido como um fidalgo e de mão dada com a
moça cantando prazenteiro:
Frade: Corpo
de Deus consagrado!
Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!
E continua a
desembainhar o espanto por o esperarem as chamas do Inferno...
Como? Por
ser namorado
e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...
Duas misericórdias
do cadeiral coimbrão ilustram estes prazeres luxuriosos. Numa delas, um figura
monstruosa, com hábito monacal deixando ver as cochas, devora um ser humano
enrolado no seu corpo. Confrontada com representações paralelas tudo aponta
para uma alusão ao pecado da sodomia figurado pela garganta do demónio.
Noutro local assiste-se a uma cavalgada pecaminosa, em que frade se deixa levar
pelo pecado da luxúria, em vez de a dominar, como sintomaticamente se depreende
pela nudez da parte traseira do corpo (podem traçar-se paralelos com figurações
dos frisos das cadeiras baixas do cadeiral da catedral de Sevilha assim como
numa gravação em pedra de um tímpano da catedral de Notre-Dame de Paris).
As
palavras loucas orelhas moucas
As
críticas ao mau comportamento no interior do templo não se dirigiam apenas aos
religiosos, nelas se incluíam os próprios crentes que preferiam distrair-se em
conversas de má-língua. Como bem reparou Luíza Clode, uma figurinha do
cadeiral da Sé do Funchal, representando um homem nu que caminha enquanto tapa
os ouvidos, deve ser uma alusão a estes pecados de orelhas. O
penitencial medievo de Martim Perez menciona-os como pequenos pecados que devem
ser confessados à entrada da missa ou no fim da pregação. ...Das orelhas
digo: se ouvyo com ellas murmurar e dos seus christaãos mal dizer. Se ouvyo
doestar, Se ouvyo cantar cantares vaãos. Se ouvyo palavras torpes ou mentiras
ou palavras ouçiosas e vaãos dizer. Se ouvyo novas do mundo recontar (...)se
com ellas nom ouvyo e entendeu as palavras da pregaçom. Se com ellas nom ouvyo
as horas de Deus, com toda a devoçom... Como dizia o ditado: quem bem vai cantando não pode ir orando,
o que pode explicar o facto da admoestação emparelhar com uma série de
figurinhas que se entregam às folias das gaitas de foles, representadas no mesmo cadeiral, ou às reacções satíricas dos cães que tapam as
orelhas perante bicharocos que os desafiam ao som de liras, como se pode ver no exemplar coimbrão.
A
sátira incluía uma série de variantes, apoiando-se nos ditos populares e textos
moralizadores de que a referida Stultifera Navis Nave é um dos melhores
exemplos. O autor compara os religiosos pouco atentos aos ofícios corais com a
multidão que também se entretinha com as momices do famoso Roraffe,
boneco em forma de camponês barbudo, colocado junto ao órgão da catedral de
Estrasburgo. Como se diz num outro verso, louco é também o guardador de ruídos,
o crédulo de ouvido fino e orelha larga que enche a cabeça de balelas. Quanto
aos linguarudos, dava-se-lhes o conselho de enfiarem uma meia na boca, antes que se lhes fritassem as línguas na grelha». In Maria
Manuela Braga, A Marginalia Satírica
nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista
Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais,
FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.
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