«A geografia árabe não é muito conhecida
em Portugal, mesmo aquela que descreve a Península Ibérica, e principalmente,
as descrições árabes do espaço hoje português. Além de algumas traduções
parciais e pontuais, do punho de David Lopes, e, mais recentemente, de José
Garcia Domingues, dispôs-se apenas, ao longo das últimas três décadas, do
inserido na antologia Portugal na Espanha Árabe, organizada por António
Borges Coelho. Se as primeiras têm a virtude de serem traduções obtidas
directamente dos textos árabes, e por vezes de autores menos conhecidos e explorados,
a última coligiu as três principais, e mais substanciais, fontes geográficas
árabes então conhecidas sobre o ocidente peninsular, e que eram: o texto
tradicionalmente atribuído a al-Râzi, o de al-Idrîsi e o de al-Himyari. Mas
o panorama sobre os autores árabes que escreveram sobre al-Andalus é muito mais
vasto sendo de toda a urgência que o mesmo se amplie, pois a ausência de novos
textos em língua portuguesa tem tornado, no contexto geográfico, o discurso um
pouco gasto e repetitivo. Assim, escolhemos dois autores do século VII da
Hégira / XIII d. C., Yâqût al-Hamâwî e Ibn Sa‘îd al-Maghribî, para uma primeira
contribuição ao panorama em questão. Apenas pontualmente traduzidos para
português pelos dois arabistas atrás identificados, poderemos considerá-los
como praticamente inéditos. Apresentamos aqui a totalidade das
informações que ambos redigiram sobre o espaço português. Autores mais tardios,
é certo, têm, no entanto, as suas obras, a vantagem de poderem ajudar à
reconstituição de fontes mais antigas, parcialmente ou totalmente
desaparecidas, como são os casos de al-Râzî, al-Udhri e al-Bakri. Yâqût
al-Hamâwî é anterior a Ibn Sa‘îd al-Maghribî, embora ambos tenham composto as
suas obras no século VII / XIII, o primeiro um monumental dicionário geográfico
do mundo então conhecido; e o segundo duas obras, uma antologia poética, com
introduções de tipo geográfico, um verdadeiro tratado de geografia. Optámos por uma tradução que tentasse seguir
tanto a letra como o espírito dos textos em causa.
Ásia Menor, 575 / 1179. Alepo, 626 / 1129. Vida
Nascido na Ásia Menor, cerca de 575 / 1179, foi capturado em jovem e
levado a Bagdad, onde foi vendido. O seu amo, um rico mercador, reconhecendo os
seus dotes de inteligência, permitiu-lhe que se dedicasse aos estudos. Em 596 /
1199-1200 obtém a sua liberdade. Nas inúmeras viagens que realizou a
partir de então, e nas leituras que fez, recolheu informações que lhe serviram
para, na segunda metade da década de 1220,
compor o seu famoso Dicionário Geográfico, o Mu‘jam al-buldân.
Veio a falecer em Alepo, em 626 / 1129.
O dicionário geográfico. Mu’jam al-buldân
Tendo escrito esta obra na fase final da
sua vida, entre 1225 e 1229, é, sem dúvida, uma fonte para todo o mundo
islâmico, no início do século VII da Hégira / XIII da Era cristã. Tem ainda a
particularidade, de extrema importância, de procurar clarificar e fixar as
grafias dos topónimos tratados ao longo do Dicionário, para tentar acabar com
confusões. Para al-Andalus, recupera topónimos que proviriam de obras
desaparecidas, na totalidade ou em parte, como de al-Râzî, ou al-Bakrî, entre
outros. A sua fonte textual andalusî foi Ibn Ghâlib.
Âlbash – Elvas: Com I no lâm, Yâ
sem vogal e shîn com pontos. Cidade em al-Andalus. Entre ela e Badajoz, um dia.
Ocsónoba – I: Com a; depois
ausência de vogal; a no shîn com pontos; nûn sem vogal e bâ com um só ponto. É
uma região em al-Andalus. Imensamente conhecida pela abundância dos seus bens
naturais. Entre ela é Silves são seis dias; e entre ela e Lepe (povoação da
província andaluza de Huelva), três dias.
Arûsh – Aroche: Com a e depois
u, a wâw sem vogal; e nûn. Zona agrícola de al-Andalus, pertencente aos
distritos fiscais de Beja. O seu linho excede o linho corrente em al-Andalus.
Lisboa – I: É uma cidade de
al-Andalus, também chamada Lashbû-na. Limita com Santarém perto do mar
envolvente (Oceano Atlântico). Existe nas suas costas um âmbar excelente. Diz
Ibn-Haw-qal, encontra-se na desembocadura do rio de Santarém em direcção ao mar
(não foi detectada esta passagem na edição de Ibn Hawqal que utilizamos). Diz
ainda, da foz do rio que é em Almada, até Lisboa, e daí a Sintra são dois dias.
Al-Andalus
Al-Andalus […] estende-se do limite da
Galiza até à kura de Santarém, [daí] até Lisboa [e] até Jabal al-Ghûr
e demais cidades que vão até Gibraltar [...]; esta notícia consta de excertos relativos ao espaço do ocidente
peninsular, constantes na entrada em que Yâqût descreve a forma, e os limites
extremos da Península Ibérica. O segundo lado, esta parte é extraída da
descrição do segundo lado do Triângulo, forma atribuída à Península
Ibérica, que os autores árabes recorrentemente citam, as Crónicas do Mouro
Rasis e Geral de Espanha de 1344 retomam, e que remonta pelo menos a
Paulo Orósio de Braga. [...]; segue, depois da foz do Guadalquivir, para a ilha
de Saltes, o rio Guadiana, Tavira, Santa Maria (no texto: Shantara, que
a ser certo seria Sintra, por Shantamariyya, nome por que era
conhecida Faro. Trata-se, portanto, de um evidente lapso de copista, devido à
semelhança gráfica entre os dois topónimos em árabe, Silves e daqui gira em
direcção a Lisboa e Santarém, regressando depois ao Cabo de S. Vicente, o
extremo do ocidente, em frente a Silves, podendo o mar ser cortado entre Silves
e o Cabo de S. Vicente, por uma distância de cinquenta milhas. Lisboa, Sintra e
Santarém estão à direita de um alfoz. O Cabo de S. Vicente é um monte que se
eleva entrando pelo mar cerca de quarenta milhas, onde se ergue a famosa Igreja
dos Corvos. Em seguida, abandonando o Cabo de S. Vicente, junto ao Mar
Circundante, designação recorrente para Oceano Atlântico, em árabe al-bahar
al-Mhît, passa-se pelo alfoz de Arrifana, pelo alfoz de Mira (no texto Hawz
al-Madra, o facto daquela se situar a norte do Alfoz de Arrifana, o qual
engçobaria sensivelmente os actuais concelhos de Lagos, Vila do Bispo e
Aljezur, leva-nos a fazer aquela leitura; seria o alfoz da região de Odemira,
ou Hawz al-Mîra) e cruzam-se aquelas regiões inflectindo para norte». In António Rei, O Gharb al-Andalus em dois
geógrafos árabes do século VII/XIII, Yâqût al-Hamâwî e Ibn Sa’îd al-Maghribî,
Bolseiro da FCT, Lisboa, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano
1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.
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